quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

E porque há pessoas.








E porque há pessoas, pessoas com histórias, pessoas sem memórias, pessoas que falam, pessoas que querem ser ouvidas, pessoas a viver, pessoas a desesperar, pessoas amargas, pessoas doces, pessoas com sabor a menta, e pessoas com pêlo na venta, pessoas que choram, pessoas que nunca choram, pessoas a morrer, pessoas a viver, pessoas a desejar, pessoas a deixar de acreditar, pessoas com mãos abertas, pessoas de alma morta, pessoas que não cabem na porta, pessoas a viver, pessoas sem conseguir, pessoas a arrebatar pessoas, pessoas a sacanear pessoas, pessoas a amar pessoas, pessoas a viver, pessoas sem sonhos e pessoas cheias de sonho, pessoas a cheirar a mel, e pessoas com hálito de fel, pessoas a nascer, pessoas a esquecer, pessoas a escrever, pessoas a comer e pessoas a querer e pessoas a não querer, pessoas das histórias, pessoas sem história, pessoas no poder e pessoas a não viver, pessoas na labuta, pessoas na alma e almas cheias de pessoas e pessoas sem alma, e porque há pessoas:
o mundo conta-se e reconta-se.

Engolir o inaceitável e nem o vomitar. Sobreviver ou sucumbir? Regina Spektor - No Surprises (Radiohead Cover)




A precarização do trabalho produz muitas coisas, durante algum tempo alimentei a ideia de que o novo modelo do mundo laboral, a lógica de projectos por oposição à lógica do emprego, poderia ser motivadora, transformando cada momento num desafio, julguei que a nossa geração seria convidada a provar o seu valor e através do mérito poderia encontrar o seu próprio espaço, mais do que encontrar, fabricar o seu espaço. Não se trata de fazer aqui um momento semi psicanalítico, acerca do meu caminho, sim, padeço de desilusão, mas o húmus da minha desilusão é a fúria.

São quase vinte anos a trabalhar e a ver e ouvir relatos de outros que trabalham e a compreender a sordidez de um sistema que nos seduziu com a individualidade quando nos queria cada vez mais individualistas, individualistas, vidas centradas no ego, incapazes de comungar, de em comum caminhar, um sistema que se blindou por dentro e nos deixou de fora. E nós, entretidos com o nosso cotãozinho umbilical, incapazes de ver a imagem em tamanho natural, fomos andando até compreendermos, na pele que não há mais estrada.
Beco sem saída?
Nada disso.

Momento para acordar a fúria e chamar o sentimento gregário que nos salvou como seres humanos, encontrar pontos em comum e em comum destruir um sistema que tem a consciência social de um Club Inglês só para sócios, estamos de fora, os nossos filhos estão de fora, os nossos amigos estão de fora, e de fora aqui não se resume a não tomar xerez em poltronas de cabedal capitonê, estar de fora, quer dizer morrer, passar fome, ter medo, viver de angústia em angústia, aceitando tudo e todas as condições de trabalho por mais escabrosas que elas sejam. Estar de fora pode ser, pelo contrário, aquilo que nos une. Os dias do encolher os ombros, do faz a tua vidinha, da insconsciência cívica e política estão a sair-nos bem caros, mas ainda é tempo, ainda é tempo de sermos muralha de gente e enfrentar a deslealdade e a iniquidade, não podemos continuar a engolir o inaceitável e nem o vomitar na frente de quem o dá, por medo de deixar de o ter, o inaceitável é sempre inaceitável. E termino repetindo que este não é um desabafo pessoal, é uma questão de consciência colectiva, aquela que a minha geração é acusada de não ter.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Da inutilidade da escolha.Thomas Feiner & Anywhen - All That Numbs You




Não escolhemos a vida, a vida escolhe-nos.
A vida ronda-nos e foge e retorna.
A estrada não guarda, devolve tudo.
OS nossos desejos são gatos, fogem em janeiro para regressarem em fevereiro.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

o silêncio e as crianças.




Há um ruído permanente que impossibilita o pensamento, a criatividade, a reorganização interna do mundo, um barulho artificial e constante.
As crianças estão rodeadas por estímulos sonoros sem pausas, sem silêncios, giram frenéticas de actividade em actividade, da tv para a consola, do telemóvel para o mp3, num frenesim quase premeditado para impedir o silêncio.
A palavra perde a sua dignidade no meio da verborreia.
Estamos a habitar num mundo de cacofonias plurais, agredindo constantemente a beleza do espaço vazio.
Como já devo ter referido, trabalho com meninos e meninas do 1º ciclo, numa escola pública, nos arredores de Lisboa.
Desde há duas semanas lancei um desafio a uma das turmas, durante a primeira meia hora de aula não produzimos som algum, filtram-se as palavras e só se pode falar em caso de necessidade absoluta, as palavras a dizer devem sem necessárias, se existir alguém que tenha algo muito importante para partilhar então todos param o que estiverem a fazer e voltam o rosto e os olhos para aquele que peça a palavra.
Durante esse tempo podem comunicar através de gestos, e deliberar em autonomia se podem ou não fazer coisas como assorem-se, beber água, ir à casa de banho.
O trabalho proposto é anunciado por mim, repetindo pelo menos três vezes.
Hoje foram quarenta e cinco minutos de silêncio quase total, estavam a desenhar mapas de vida, assinalando quatro momentos muito importantes das suas vidas, pedi-lhes apenas que fossem sinceros e que respeitassem o silêncio.
A dimensão da palavra falada no momento de partilharem o trabalho teve um outro sabor e a escuta também foi mais atenta e interessada.
Faça-se silêncio que se vai cantar a vida.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

se te abeiras de mim anoiteço (Agnes Obel - Riverside )



Se te abeiras de mim anoiteço
e é uma noite boa de sombras vivas nas paredes brancas
vislumbro danças e adormeço no embalo da correnteza
em ti as vagas não se agigantam
o perigo dorme nos limos enredantes.
Se te abeiras de mim anoiteço
e gosto de anoitecer.

sábado, 19 de janeiro de 2013

As mulheres não se dividem entre bonecas e medeias.





Pende ainda sobre as mulheres o peso do estereótipo, talvez fermentado pelas próprias, alimentado por industrias que exploram a solidão e o desejo e preservado, quase de forma intacta, na cabeça dos homens.
As mulheres não se dividem entre bonecas e medeias, as mulheres não são um todo, nem uma massa pigmaleanável.
Já os homens, esses são todos iguais.(esgar irónico)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Se as fundações estiverem em ruína, seremos nós capazes de as suportar?




À medida que os dias passam a sombria perspectiva de um desmoronamento ganha consistência, estamos perante uma viragem de agulhas repentina e dissecante.
O país é um ser de peito aberto sobre uma mesa cirurgica, infelizmente os cirurgiões estavam indisponíveis, compareceram os carniceiros e os loucos sanguinários.
A operação em curso carece de legitimidade, o paciente está inconsciente e aqueles que se apresentam como família são abutres de ocasião.
A indiferença colectiva como que recebemos todas as notícias leva-me a questionar até que ponto compreendemos verdadeiramente o que está em causa.
Demolir o estado, destruir as instituições não conduz ao paraíso liberal, um lugar mágico onde tudo funciona, porque cada um é forçado a competir com todos os outros, desenganemo-nos, demolir o estado, arrasar as instituições, e relegar todos os que nelas participam para o papel de indigentes, conduz à barbárie, o senso de auto-preservação, a necessidade garantir a sobrevivência, num modelo não solidário, nem comprometido com o outro, leva-nos a fechar circulos, dentro do circulo estão os meus, no lado de fora estarão os outros. E é o que já começa a espreitar, cada um por si, salve-se quem puder.
Se estivéssemos todos comprometidos com a fundação do edifício que habitamos, talvez compreendessemos que a falência das instituições não se resolve com clones privados dessas mesmas instituições, é como acreditar que o céu pintado num tecto em trompe L'oeil é o verdadeiro paraíso.
Daqui para a frente deveríamos questionar-mo-nos, individual e verdadeiramente, acerca das nossas pertenças, acerca da nossa cidadania, acerca do grau de envolvimento físico que estamos disponíveis para empregar na recuperação das fundações do estado social, do estado e da sociedade. Quantos de nós estariamos prontos para assegurar o funcionamento de escolas?, dos hospitais? dos lares, da regulação do trânsito, da recolha do lixo, da manutenção da ordem pública? e um sem número de funções que ainda são asseguradas pelo estado. Até que ponto emprestaríamos as nossas mãos e a nossa alma, os nossos conhecimentos, a nossa experiência profissional, para evitar o colapso da construção do bem comum?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

As duas mulheres gordas liam romances num comboio suburbano



Os joelhos tocavam-se no exíguo espaço do comboio. Frente a frente, as duas mulheres, liam livros com capas em tons de rosa chá, laranja desmaiado e pérola. As suas mãos sapudas impediram-me de ler os títulos por completo, num deles descortinei as palavras anos, romance e seda, num outro, apenas a palavra castelos se revelava.
Passavam as páginas numa velocidade acelarada, nenhuma delas levantava os olhos, o mundo todo estava ali, dentro daquelas folhas de papel. Não imagino de onde viriam, nem para onde iriam. Alimentavam-se de palavras, palavras em tons pálidos, num comboio suburbano.

domingo, 13 de janeiro de 2013

A lógica ensimesmada e a redução do campo mental.



Declaração prévia de interesses particulares: Assumo-me como um ser ilógico, pela lógica já teria morrido ou desistido há muito tempo.


Defendo a curiosidade, o espanto e o amor como critérios para que se estabeleça a relação dos homens com o mundo, dos homens com os homens e dos homens com o desconhecido.
Ontem, num diálogo circunstancial, com alguém, à volta de matemática, surgiu o conceito Sólidos Platónicos, como não sabia o que era, questionei uma das interlocutoras acerca do conteúdo do conceito, e da razão da alusão a Platão.
A resposta foi clara no que respeita às definições geométricas, fiquei a saber que são cinco e que Platão os teria associado aos elementos, o fogo, a água, a terra e o ar, a resposta torna-se vaga quando procuro saber mais, a que elementos corresponde cada sólido, e se os elementos são só quatro porque é que os sólidos são cinco?
A resposta é muito interessante:
- Pois, eu desse lado místico, não sei nada. Um deles é o universo ou assim, mas o resto não sei.
Este desprezo pelo conhecimento não atingível via operações matemáticas puras, é um claro sinal do perigo da ciência, tal como se que se impôs,desde o século XVIII, substituindo a filosofia e dEUS.
E para quem quiser saber mais, pode ir ler o Diálogo Timeu, de Platão, pois os conceitos, mesmo os do campo da matemática, têm fundações inteligíveis para além da operacionalidade lógica ensimesmada, e este diálogo contém a fundação da cosmologia, tal como se perspectivou desde a antiguidade.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013


Das minhas mãos nascem raizes de nada
No meu peito morrem dias, e nascem noites
Nada sei do algodão de que falas
O algodão não é suave
brotam fúrias e tempestades
e os meus olhos são estepes sem mar
nada sei do algodão de que falas
o teu linho nas minhas mãos é de aço
e os meus olhos são intermináveis planuras
nada sei.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

DIREITOS IGUAIS (Portuguese)




Este spot não é inocente.
A mensagem principal deste spot não é a defesa das mulheres que já são trabalhadoras da indústria do sexo.
Este spot foi realizado com financiamentos comunitários, apesar de a própria comissão europeia advertir que o seu conteúdo é da exclusiva responsabilidade de quem o fez e concebeu, e como tal não reflecte tomadas de posição da própria comissão.
Este spot dirige-se a todas as jovens sem trabalho e sem perspectivas de futuro, oferecendo-lhes uma suposta solução financeira e um analgésico para o espírito.
O que incomoda aqui, não é o facto de os estados quererem legalizar o trabalho sexual, os estados neste momento legalizarão tudo o que puder ser alvo de impostos, o que incomoda aqui, é que o III milénio só tenha para oferecer às mulheres, a mais velha profissão do mundo, camuflando o terror de tal sujeição, apenas para as tributar.




(Anish Kapoor)



O ano é novo, e nós somos velhos e desconfiados.
Enthusiasmo, espanto e branco.