segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Houve um tempo em que não tinha mortos meus.



Houve um tempo em que não tinha mortos meus.
Tinha sombras mas não tinha mortos meus.
Em 1995 morreu a minha bisavó, tinha 89 anos e era trisavó do meu filho mais crescido.
A morte da minha Bisavó foi uma passagem brutal e crua, foi a primeira vez que tomei consciência de um abandono irreparável.
Morreram algumas pessoas na família alargada desde então, mas não eram, nem serão, os meus mortos.
Em 2009 chorei a morte do meu Pai que morrera 26 anos antes.
Esta morte era o fim de uma longa jornada até a uma vala comum. Um desenterrar mórbido da minha própria história, o final abortado de todas as ilusões. Um golpe sem misericórdia, um cachimbo, oito irmãos, vários sobrinhos e uma morte.
No ano passado morreu o meu Avô materno, perdidas as ilusões era apenas um homem, que me ensinou muito, ensinou-me como matar de desprezo pessoas vivas e a escutar música clássica, foi por causa da sua melomania que um dos meus primeiros sofrimentos em criança foi constatar que o "Danúbio azul" não tinha sido composto por mim.
Morreu e eu cresci mais ou talvez tenha apenas deixado de ter quem se lembre de mim antes de todos os falhanços.
Não falo dos meus mortos, não comunico as minhas mortes, guardo-as no abismo da dor, um lugar onde a solidão me passa a mão pelos cabelos e onde não levo companhias.
Mas hoje soube da morte de uma amiga. E nunca desci até ao lugar da dor por amigos e não sei fazê-lo.
Até já, telefono-lhe quando for à Casa das Histórias, como no outro dia, e tomamos um chá e os miúdos brincam por ali.
E tenho a certeza que vai estar por ali.
Lembra-se do que dizia o João, miúdo, há 14 anos atrás, abrindo a janela do seu carro, e  gritando ao vento?
- Adeus Vida Toda!

http://www.youtube.com/watch?v=r75BFcH4u2k&feature=share


(post scriptum , o tempo cronológico é linear, o tempo do sentir não)


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os amores fazem parte de nós, como um sangue secreto



Os amores fazem parte de nós, como um sangue secreto
os amores são eternos mesmo quando acabam.
Uma estranha certeza.
Há no amor um sentido de preservação que vai para além da relação enquanto tempo de partilha, nunca se deixa de amar.
O objecto de um amor, é como uma devoção, passado o nojo, regressa sob a forma de sorriso imperceptível.
Esta é a dimensão da eternidade, esta é a diferença fundamental entre a paixão, aquela que convoca  o prazer e a dor, e o amor, aquele que supera a morte.
Não há lugar para vingança depois do amor, porque não há um depois do amor.
(caminho estranho de reconhecimento da geografia privada, resposta às sucessivas questões internas e externas acerca das razões para ilogicamente desejar coisas boas a tudo o que amei, e porque não emprego a energia na destruição)


http://www.youtube.com/watch?v=tOI575atco4

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Sou a tua parte sombria Emmy Curl - Like The Rain







O cabelo era um cabelo revolto
as mãos poderiam matar ou amar
os olhos perdidos no fundo das olheiras
os lábios mordidos, a boca fechada.
Caminhava como se um longo manto de algas a cobrisse.
- Sou a tua porção de sombra- disse-lhe ele.
Ela semicerrou os olhos e compreendeu.
- Obrigada por me achares, porque demoraste tanto?

domingo, 6 de outubro de 2013

e eu a chamar-te

http://www.youtube.com/watch?v=0F24oewmNG4



                                                          Joan Miró









De nós apenas contornos
sem espessura ou profundidade
traços demasiado breves
e eu a chamar-te
e tu sem te reconheceres
no nome que te dou
e eu a chamar-te
e os traços, agora riscos,
a morrerem na folha
e eu a chamar-te
tens a cicatriz
e eu o tear.

sábado, 5 de outubro de 2013

Porque se zangam as pessoas?


A tradução popular do individualismo não esclarecido poderia ser a frase "trata é da tua vidinha e não te preocupes com a política", este mote pautou e pauta o exercício da cidadania de milhares de portugueses.
Esta noção de que o tratar da vidinha é incompatível com a consciência política revela o abismo entre os cidadãos e os governantes. Esta  separação entre aquilo que deve ocupar cada um, colocando em lados diferentes, as pessoas e os políticos, foi a pedra basilar para a não monitorização da condução da democracia. Os cidadãos deveriam apenas comparecer nas alturas devidas nas urnas para legitimar o regime, um regime que reivindicava a orientação popular ( republicana) mas que esgotava a relação com os cidadãos num orgasmo com hora marcada e sem direito a noite nem a escova de dentes na casa de banho.
E os cidadãos que tinham falta de cultura democrática, lá iam tratar das suas vidinhas, e tudo correria tranquilamente não fosse a falta de liquidez que arrancou com violência, inédita nos últimos 35 anos, os cidadãos dos centros comerciais e os forçou a regressarem às praças.
Hoje quase todos opinam, opinam os que sempre participaram, os que nunca participaram e aqueles que perderam as vidinhas, e porque opinam?
Estão audivelmente zangados, e porque se zangam as pessoas?
Zangam-se porque a ética, a noção de bem comum e o serviço público, não fazem parte do modus operandi dos eleitos para gerirem e decidirem o  presente e o futuro.
Era bom sinal.
Mas temo que se agora nos chovesse um qualquer ouro de um qualquer Brasil, toda esta consciência social se diluiria.
Se a maioria dos cidadãos pudesse regressar às suas vidinhas, os outros poderiam manter-se sem serem prescutados. E este temor apavora-me mais do que a implacável certeza do terror e da miséria.
Apavora-me que seja possível praticar todo o tipo de maldades sobre um povo, contando que este possa iludir-se saboreando as migalhas, apavora-me que a consciência  da necessidade de justiça, de equidade, de coesão social, esteja directamente dependente da quantidade de bens de consumo a que se tem acesso, da possibilidade do exercício de um individualismo bacoco que é muito mais uma demissão da consciência do que a construção de uma sociedade de indivíduos que superam a tribo e assumem o seu destino e a sua autoregulação.
No fundo, sei que se o Jardim arranjasse euros para despejar na Madeira, talvez os madeirenses ignorassem a ausência de cultura democrática, se o Machete trouxesse uns diamantes angolanos que nos livrassem da troika, Angola receberia um prémio de direitos humanos e uma comenda presidencial, ante o aplauso apalermado de uma turba lambuzada.
Se as pessoas se zangassem perante a exibição despudorada da ausência de ética, teriam que se ter zangado durante as últimas décadas com muitos dos governantes que endeusaram, teriam que se zangar consigo próprias por terem escolhido a cegueira selectiva e não terem exercido a cidadania esclarecida e atenta.