domingo, 19 de janeiro de 2014

As últimas palavras.

Raiava o dia quando lhe bateram à porta.
-Vimos confiscar as suas últimas palavras.
-Mas eu...
-Entregue-as de livre vontade.
-Mas... eu...
- Está a tornar as coisas mais difíceis, vamos ter que lhe tirar as palavras recorrendo à força. Colabore connosco.
- Mas...
Tinha sido um processo gradual. Primeiro começaram as falhas episódicas, depois ela própria tinha oferecido palavras ao vento, esperando vocábulos novos trazidos pelo sopro longínquo, mas a resposta chegava em forma de silvado sem contorno ou verbo.
E depois vieram apreender-lhe as primeiras palavras, dessa vez enrolou-as em papel de seda e entregou-as como se entregasse um filho, da segunda vez que vieram fazia sol mas já não tinha a palavra luz.
Depois desta última visita, tornou-se quase impossível contar o que lhe aconteceu.
Sem verbos, deixou se ser, restava-lhe estar. S
entou-se debaixo da velha pinheira mansa, alegrando-se em longos sorrisos e fechares de olhos, conhecendo na pele as transformações trazidas pelo vento, pelo sol, pela chuva e pela lua.

http://youtu.be/2XbNt5ahKPM

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

E quando me contar, hei-de fazê-lo ao contrário.

E quando me contar hei-de fazê-lo ao contrário.




          E, aquele
          que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.
Manoel de Barros





Narro-me de trás p'rá frente, e não é uma metáfora, é ilustrativo.Foram precisas décadas para descer ao poço.Na superfície, deixei-me gazela sacrificial degolada.No fundo do meu poço estava o meu nome e um punhado de pessoas que comigo o partilhavam.E um dia, depois de ter filhos, tive irmãos, muitos e maiores do que eu, e a frátria que me era uma terra desconhecida, passou a ser uma terra quente mesmo  mantendo a distância, nasceram-me oito irmãos como num trangolomangolo ao contrário.E nasceu-me um pai morto e morreram alguns vivos que antes tinham nome e o perderam.E o tempo perdeu a linha e elipsou-se numa verdade desprovida de verosimilhança, e desde então procuro rectas que nunca o foram e perco-me em galerias ascendentes e descendentes, o tempo que não tinha começado até há alguns anos, aguarda agora um desfecho para se sincronizar com o tempo contado nos relógios e nos calendários.(http://www.youtube.com/watch?v=dTADU0iMnF4)