terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Folhados de queijo Chèvre com oregãos e mel.
O título do blogue anuncia, Pão, bolos e Noradrenalina.
Os dias estão ásperos, o momento especial pode recuperar o seu lugar, o ritual pode largar a lenda e sentar-se à mesa, mesas que se querem de partilha e multiplicação.
1 embalagem de massa folhada fresca.
1 queijo chèvre.
2 gemas
150 ml de natas frescas
sal
pimenta
oregãos
12 gotas de mel.
Cortam-se 12 quadrados de massa folhada.
Colocam-se sobre papel vegetal, 12 pequenos quadrados. e sobre um tabuleiro de forno.
Batem-se as gemas com as natas, o sal, a pimenta e os oregãos.
Cortam-se 12 rodelas generosas de queijo.
deitam-se 2 colheradas da preparação de gemas e natas em cada quadrado de massa folhada.
Sobre o preparado coloca-se uma rodela de queijo chèvre.
Fecha-se o folhado em forma de embrulho, juntando os quatro cantos no centro.
Leva-se ao forno, médio, previamente aquecido, durante cerca de 12 minutos.
Serve-se quente com uma gota de mel e um copo de vinho tinto, Quinta da Pacheca, por exemplo.
Em defesa da divergência, contra a inevitabilidade.
Chegados a este momento, o ano de todas as inevitabilidades, creio ser pertinente avaliar, reflectir e questionar o curso das coisas da arte e da educação.
A ignorância e a inveja, aliadas ao senso comum, produzem na sociedade uma animosidade contra a comunidade artística. Uma animosidade que não é inocente nem desprovida de intenções.
Sem extrapolar para teorias da conspiração, é por demais evidente, a estratégia de debilitação premeditada do pensamento crítico, e como não poderia deixar de ser, este projecto obscurantista tem ramificações na nascente, ou seja, na educação.
Educar para a sensibilidade é muito mais do que adestrar para a exibição de truques, Educar para a Sensibilidade é todo um projecto de civilização.
Uma civilização que não partilha com as gerações mais novas, os seus marcos, as suas falências passadas, os seus golpes de génio, as suas obras de arte, a sua música, as imagens do tempo anterior, é uma civilização que não se reconhece e não se respeita.
A construção de uma caminhada entre a rivalidade tribal e a apregoada fraternidade comunitária, pressupõe um pensamento e uma acção em contínua busca por um equilíbrio, ou pelo menos o desejo manifesto desse equilíbrio, ainda que ele seja inatingível.
Quando se suspende o desejo por um mundo melhor, quando se restringe a porção de horizonte disponível, não é possível estruturar um pensamento sobre a educação, porque educar é preparar urdiduras para o futuro de tramas incertas.
A reboque da diabolização das áreas consideradas não estruturantes do saber, tem-se vindo a assistir ao diminuir da importância dos conteúdos não mensuráveis, e mais uma vez entra o senso comum, a aclarar escurecendo, medir, avaliar, pesar, quantificar não são a única forma de testar a eficácia de um saber ou de um labor.
Olhando para uma orquestra sinfónica compreendi várias coisas.
Compreendi que a afinação dos violinos depende do seu tocador e que o som é extraído dos tímbales através da percussão.
Aparentemente esta imagem não revela nada de transcendental, numa orquestra, como numa comunidade, existem vários naipes de instrumentos, cada um com um com um timbre e uma qualidade sonora próprias; mas talvez seja mais do que isso, talvez uma questão de opção, que som queremos escutar, que modelo de sociedade, que cidadãos queremos para o futuro?
As respostas a estas questões são como o Ph do solo, sem o sabermos não é possível definir as plantações possíveis, pode experimentar-se deitar sementes mas não se pode saber o que esperar.
Uma orquestra de Tímbales produz uma sonoridade com poucos cambiantes, não se pode esperar melodia, apenas ritmo, as variações são apenas na intensidade, pode percutir-se com mais ou menos força, e percutir quer mesmo dizer bater, ferir, golpear, produz som, é certo mas extraído pela acção de bater.
Uma orquestra de violinos, é uma orquestra de afinações individuais que se conjugam na produção de melodias em comum, o som não depende da força para ser extraído, antes da sensibilidade com que for tocado, da correcta tensão entre os dedos sobre as cordas e o desenho dos movimentos do arco, o som produzido resulta de um equilíbrio em construção permanente.
São caminhos distintos, ambições muito diferentes.
Ostracizar o potencial transformador da convivência com a arte é uma atitude ignorante e os cidadãos da Europa não deveriam aceitar passivos a amputação dos seus direitos de participação na cultura da sua comunidade.
A caminhada europeia fez-se de conflito, pontuada por pequenos intervalos pacíficos, ignorar as tensões existentes não as soluciona. Por diversas vezes, nessa caminhada, o norte se sentiu detentor da ética e recriminou o sul pela sua relação sensual com a vida, se olharmos para os movimentos da Reforma, se olharmos a história e a arte compreenderemos melhor o tempo que nos envolve.
Mas compreender não é aceitar, são movimentos distintos, compreender é olhar para além do episódio, aceitar é subordinar-se ao facto consumado.
Anuncia-se uma nova reforma curricular, supostamente ditada pela austeridade, daquelas que expurgará toda a inutilidade que parasita o sistema educativo. A coberto destas engenharias financeiras muitos projectos válidos irão encontrar sérias dificuldades de sobrevivência.
O modelo preconizado parece apontar para uma nova primazia do pensamento convergente, não deixa de ser curioso que num momento em que muitas estruturas produtivas da Europa estão em falência, se queira impulsionar de novo uma lógica de reprodução e imitação, tão ao gosto da industrialização do século XIX.
Aliando este retrocesso à degradação das condições de vida de milhões de pessoas poderíamos desenhar um cenário macabro, saído de uma qualquer ficção científica, com uma mensagem, nada subliminar, Resigna-te ou morre.
Desenganem-se os que consideram estas operações como inevitabilidades, aqueles que gostam de dizer frases como “ Isso é tudo muito bonito mas agora não há dinheirinho”, existe, isso sim, uma lógica de corporações a enquadrar as escolhas, em todas as áreas de actuação governamental.
Não existem inevitabilidades na governação, se existem, então estamos todos enganados quanto ao real valor da democracia, se os projectos de quem se propõe governar não são viáveis face à inevitabilidade, então o debate entre projectos é inútil e estéril, então a democracia é uma falácia, cujo objectivo é co-responsabilizar os cidadãos por decisões pré-determinadas.
As decisões correspondem a visões do mundo, mais ou menos distorcidas, mas existe sempre um quadro mental para estruturar as opções. O problema é não discutirmos esses quadros mentais, essas visões do mundo. É aí que precisamos intervir, pedindo explicações sobre o
modelo de sociedade humana subjacente à torrente de destruição a que temos vindo a assistir.
Defender a Educação para a Sensibilidade é defender uma estrada que já foi de terra, já se forrou de pedras, já se cobriu de alcatrão e que corre o risco de regressar à terra batida, esta estrada chama-se civilização ocidental, compreende a Europa e as suas ligações ancestrais, é terra mas também é narrativa, é um porto e um barco, um homem, um rinoceronte e as lendas, é um lugar e um caminho, pestes, mortes, invenções, pinturas, músicas, esculturas e tudo o mais que a humanidade consiga desejar e construir.
Continuar a defender uma Educação para a Sensibilidade é defender um modelo de sociedade em construção de um equilíbrio, difícil mas desejável.
Rita Tormenta.
A ignorância e a inveja, aliadas ao senso comum, produzem na sociedade uma animosidade contra a comunidade artística. Uma animosidade que não é inocente nem desprovida de intenções.
Sem extrapolar para teorias da conspiração, é por demais evidente, a estratégia de debilitação premeditada do pensamento crítico, e como não poderia deixar de ser, este projecto obscurantista tem ramificações na nascente, ou seja, na educação.
Educar para a sensibilidade é muito mais do que adestrar para a exibição de truques, Educar para a Sensibilidade é todo um projecto de civilização.
Uma civilização que não partilha com as gerações mais novas, os seus marcos, as suas falências passadas, os seus golpes de génio, as suas obras de arte, a sua música, as imagens do tempo anterior, é uma civilização que não se reconhece e não se respeita.
A construção de uma caminhada entre a rivalidade tribal e a apregoada fraternidade comunitária, pressupõe um pensamento e uma acção em contínua busca por um equilíbrio, ou pelo menos o desejo manifesto desse equilíbrio, ainda que ele seja inatingível.
Quando se suspende o desejo por um mundo melhor, quando se restringe a porção de horizonte disponível, não é possível estruturar um pensamento sobre a educação, porque educar é preparar urdiduras para o futuro de tramas incertas.
A reboque da diabolização das áreas consideradas não estruturantes do saber, tem-se vindo a assistir ao diminuir da importância dos conteúdos não mensuráveis, e mais uma vez entra o senso comum, a aclarar escurecendo, medir, avaliar, pesar, quantificar não são a única forma de testar a eficácia de um saber ou de um labor.
Olhando para uma orquestra sinfónica compreendi várias coisas.
Compreendi que a afinação dos violinos depende do seu tocador e que o som é extraído dos tímbales através da percussão.
Aparentemente esta imagem não revela nada de transcendental, numa orquestra, como numa comunidade, existem vários naipes de instrumentos, cada um com um com um timbre e uma qualidade sonora próprias; mas talvez seja mais do que isso, talvez uma questão de opção, que som queremos escutar, que modelo de sociedade, que cidadãos queremos para o futuro?
As respostas a estas questões são como o Ph do solo, sem o sabermos não é possível definir as plantações possíveis, pode experimentar-se deitar sementes mas não se pode saber o que esperar.
Uma orquestra de Tímbales produz uma sonoridade com poucos cambiantes, não se pode esperar melodia, apenas ritmo, as variações são apenas na intensidade, pode percutir-se com mais ou menos força, e percutir quer mesmo dizer bater, ferir, golpear, produz som, é certo mas extraído pela acção de bater.
Uma orquestra de violinos, é uma orquestra de afinações individuais que se conjugam na produção de melodias em comum, o som não depende da força para ser extraído, antes da sensibilidade com que for tocado, da correcta tensão entre os dedos sobre as cordas e o desenho dos movimentos do arco, o som produzido resulta de um equilíbrio em construção permanente.
São caminhos distintos, ambições muito diferentes.
Ostracizar o potencial transformador da convivência com a arte é uma atitude ignorante e os cidadãos da Europa não deveriam aceitar passivos a amputação dos seus direitos de participação na cultura da sua comunidade.
A caminhada europeia fez-se de conflito, pontuada por pequenos intervalos pacíficos, ignorar as tensões existentes não as soluciona. Por diversas vezes, nessa caminhada, o norte se sentiu detentor da ética e recriminou o sul pela sua relação sensual com a vida, se olharmos para os movimentos da Reforma, se olharmos a história e a arte compreenderemos melhor o tempo que nos envolve.
Mas compreender não é aceitar, são movimentos distintos, compreender é olhar para além do episódio, aceitar é subordinar-se ao facto consumado.
Anuncia-se uma nova reforma curricular, supostamente ditada pela austeridade, daquelas que expurgará toda a inutilidade que parasita o sistema educativo. A coberto destas engenharias financeiras muitos projectos válidos irão encontrar sérias dificuldades de sobrevivência.
O modelo preconizado parece apontar para uma nova primazia do pensamento convergente, não deixa de ser curioso que num momento em que muitas estruturas produtivas da Europa estão em falência, se queira impulsionar de novo uma lógica de reprodução e imitação, tão ao gosto da industrialização do século XIX.
Aliando este retrocesso à degradação das condições de vida de milhões de pessoas poderíamos desenhar um cenário macabro, saído de uma qualquer ficção científica, com uma mensagem, nada subliminar, Resigna-te ou morre.
Desenganem-se os que consideram estas operações como inevitabilidades, aqueles que gostam de dizer frases como “ Isso é tudo muito bonito mas agora não há dinheirinho”, existe, isso sim, uma lógica de corporações a enquadrar as escolhas, em todas as áreas de actuação governamental.
Não existem inevitabilidades na governação, se existem, então estamos todos enganados quanto ao real valor da democracia, se os projectos de quem se propõe governar não são viáveis face à inevitabilidade, então o debate entre projectos é inútil e estéril, então a democracia é uma falácia, cujo objectivo é co-responsabilizar os cidadãos por decisões pré-determinadas.
As decisões correspondem a visões do mundo, mais ou menos distorcidas, mas existe sempre um quadro mental para estruturar as opções. O problema é não discutirmos esses quadros mentais, essas visões do mundo. É aí que precisamos intervir, pedindo explicações sobre o
modelo de sociedade humana subjacente à torrente de destruição a que temos vindo a assistir.
Defender a Educação para a Sensibilidade é defender uma estrada que já foi de terra, já se forrou de pedras, já se cobriu de alcatrão e que corre o risco de regressar à terra batida, esta estrada chama-se civilização ocidental, compreende a Europa e as suas ligações ancestrais, é terra mas também é narrativa, é um porto e um barco, um homem, um rinoceronte e as lendas, é um lugar e um caminho, pestes, mortes, invenções, pinturas, músicas, esculturas e tudo o mais que a humanidade consiga desejar e construir.
Continuar a defender uma Educação para a Sensibilidade é defender um modelo de sociedade em construção de um equilíbrio, difícil mas desejável.
Rita Tormenta.
domingo, 1 de janeiro de 2012
Mãe, Porque é que não há nenhuma Avó na cadeira de baloiço?
Mãe, Porque é que não há nenhuma Avó na cadeira de baloiço?
A Mãe do Baltazar entrou em casa já a noite tinha descido.
Trazia os olhos cheios e a mala aberta, os óculos de sol a segurarem-lhe o cabelo, revelando um dia atribulado.
– Por favor, preciso que desçam comigo, está lá em baixo a minha prima Bli e também está de rastos.
O Pai do Baltazar, apoiou a mão no queixo e o cotovelo na beira da mesa, depois desalinhou o cabelo e continuava sem compreender.
– Espera, então porque tu tens uma prima, de quem nós nunca ouvimos falar, que está lá em baixo de rastos, nós somos forçados a sair da nossa própria casa numa antipática noite de Outono?
O Baltazar já sabia o caminho das palavras, levantou-se e foi procurar umas botas para acompanhar a Mãe.
– Mãe, encontrei duas botas iguais, mas são do Pai, se as apertar com muita força não me caem dos pés.
Os Pais tinham começado o seu jogo de lançamento de vocábulos bicudos e quando o Baltazar regressou à sala, o Pai riu e a Mãe já não riu, perante a sua figura tonta, magra, de cabelos encaracolados e botas desmedidas.
Desceram os três até ao Rés-do-chão, a Mãe tinha ido buscar uma fotografia à gaveta dos “umdiaquandotivertempo”, uma gaveta que albergava tralha e tesouros e coisas por catalogar.
No carro, estacionado mesmo em frente ao prédio, por baixo de um sinal de proibição de estacionamento, estava a Prima:
– Olha Mãe, eles também devem gostar de jogar aos vocábulos bicudos, já viste a cara deles?
– Baltazar!
– Sim, Baltazar, deixa lá a tua Mãe exibir os seus trunfos burgueses, um marido bem apessoado e um filho lindo e educado, vá, não arruínes tudo, nem tires nenhum gorila do nariz!
Enquanto os Pais trocavam palavras com os recém aparecidos parentes, o Baltazar saltava com as botas do Pai dentro das poças de água e dançava, agarrado às árvores nos canteiros enlameados.
O Baltazar ía pensando que talvez fosse bom ter alguns parentes, assim os Pais deixá-lo-iam saltar em poças de água e calçar botas gigantes.
O Pai subiu sozinho com a cadeira de baloiço, o Baltazar e a Mãe, esperaram o elevador subir e voltar a descer, nesse tempo, a Mãe viu a lama nas botas. Não se zangou, nem cuspiu fogo e o Baltazar comprovou, dentro de si, que ter primos faz bem.
No último andar do prédio mais alto da Avenida, o Baltazar, a Mãe e o Pai, perderam vários minutos a contemplar a recém-chegada, a cadeira de baloiço.
Toda de Madeira, castanha escura, contrastava com o branco minimal que a envolvia.
A Mãe foi buscar a fotografia que tinha levado para mostrar à prima.
Nela, uma senhora de cabelo grisalho, apertado num carrapito perfeito, lia um livro; no chão, sentadas nuns pequenos coxins de veludo, duas meninas, irrepreensívelmente vestidas, laçarotes de organza nos cabelos longos e esticados, exibiam sorrisos contidos.
O Pai estava assustado.
– Tínhamos combinado que a nossa casa era uma janela para amanhã e sem atavios de ontem...
Na maior parte do tempo o Baltazar tinha que imaginar o que os pais diziam, ninguém falava para ele, ainda que falassem com ele, as palavras não eram ajeitadas para ele saltitar nelas, o Baltazar tinha que dar passos maiores do que as pernas para acompanhar as conversas.
Aquele era mais um momento desses.
Atavios de Ontem, o Baltazar gostava do som, atavios de ontem
atavios de ontem – disse ele – Mãe, eu gosto de atavios de ontem, sabem a chocolate ?
– A Mãe sorriu-lhe e desalinhou-lhe o cabelo.
– Baltazar, atavios de ontem, são memorabilias
– Ah … Pois, isso é comida italiana?
– Não, Baltazar, são objectos que valem pelas memórias que nos trazem, compreendes?
A Mãe foi buscar um livro, “Alice no País das Maravilhas”, a encadernação e a cor amarelecida do papel, indicavam tempo passado. Aqueles objectos não eram muito habituais em casa do Baltazar.
Os Pais tinham o passado higienicamente guardado, não arrastavam tralha.
A cadeira de baloiço mantinha-se fora de tom, parecia plantada no centro da sala. Era incontornável e muito estranha. Como um extra-terrestre, ali no meio da sala.
A Mãe do Baltazar entrou em casa já a noite tinha descido.
Trazia os olhos cheios e a mala aberta, os óculos de sol a segurarem-lhe o cabelo, revelando um dia atribulado.
– Por favor, preciso que desçam comigo, está lá em baixo a minha prima Bli e também está de rastos.
O Pai do Baltazar, apoiou a mão no queixo e o cotovelo na beira da mesa, depois desalinhou o cabelo e continuava sem compreender.
– Espera, então porque tu tens uma prima, de quem nós nunca ouvimos falar, que está lá em baixo de rastos, nós somos forçados a sair da nossa própria casa numa antipática noite de Outono?
O Baltazar já sabia o caminho das palavras, levantou-se e foi procurar umas botas para acompanhar a Mãe.
– Mãe, encontrei duas botas iguais, mas são do Pai, se as apertar com muita força não me caem dos pés.
Os Pais tinham começado o seu jogo de lançamento de vocábulos bicudos e quando o Baltazar regressou à sala, o Pai riu e a Mãe já não riu, perante a sua figura tonta, magra, de cabelos encaracolados e botas desmedidas.
Desceram os três até ao Rés-do-chão, a Mãe tinha ido buscar uma fotografia à gaveta dos “umdiaquandotivertempo”, uma gaveta que albergava tralha e tesouros e coisas por catalogar.
No carro, estacionado mesmo em frente ao prédio, por baixo de um sinal de proibição de estacionamento, estava a Prima:
– Olha Mãe, eles também devem gostar de jogar aos vocábulos bicudos, já viste a cara deles?
– Baltazar!
– Sim, Baltazar, deixa lá a tua Mãe exibir os seus trunfos burgueses, um marido bem apessoado e um filho lindo e educado, vá, não arruínes tudo, nem tires nenhum gorila do nariz!
Enquanto os Pais trocavam palavras com os recém aparecidos parentes, o Baltazar saltava com as botas do Pai dentro das poças de água e dançava, agarrado às árvores nos canteiros enlameados.
O Baltazar ía pensando que talvez fosse bom ter alguns parentes, assim os Pais deixá-lo-iam saltar em poças de água e calçar botas gigantes.
O Pai subiu sozinho com a cadeira de baloiço, o Baltazar e a Mãe, esperaram o elevador subir e voltar a descer, nesse tempo, a Mãe viu a lama nas botas. Não se zangou, nem cuspiu fogo e o Baltazar comprovou, dentro de si, que ter primos faz bem.
No último andar do prédio mais alto da Avenida, o Baltazar, a Mãe e o Pai, perderam vários minutos a contemplar a recém-chegada, a cadeira de baloiço.
Toda de Madeira, castanha escura, contrastava com o branco minimal que a envolvia.
A Mãe foi buscar a fotografia que tinha levado para mostrar à prima.
Nela, uma senhora de cabelo grisalho, apertado num carrapito perfeito, lia um livro; no chão, sentadas nuns pequenos coxins de veludo, duas meninas, irrepreensívelmente vestidas, laçarotes de organza nos cabelos longos e esticados, exibiam sorrisos contidos.
O Pai estava assustado.
– Tínhamos combinado que a nossa casa era uma janela para amanhã e sem atavios de ontem...
Na maior parte do tempo o Baltazar tinha que imaginar o que os pais diziam, ninguém falava para ele, ainda que falassem com ele, as palavras não eram ajeitadas para ele saltitar nelas, o Baltazar tinha que dar passos maiores do que as pernas para acompanhar as conversas.
Aquele era mais um momento desses.
Atavios de Ontem, o Baltazar gostava do som, atavios de ontem
atavios de ontem – disse ele – Mãe, eu gosto de atavios de ontem, sabem a chocolate ?
– A Mãe sorriu-lhe e desalinhou-lhe o cabelo.
– Baltazar, atavios de ontem, são memorabilias
– Ah … Pois, isso é comida italiana?
– Não, Baltazar, são objectos que valem pelas memórias que nos trazem, compreendes?
A Mãe foi buscar um livro, “Alice no País das Maravilhas”, a encadernação e a cor amarelecida do papel, indicavam tempo passado. Aqueles objectos não eram muito habituais em casa do Baltazar.
Os Pais tinham o passado higienicamente guardado, não arrastavam tralha.
A cadeira de baloiço mantinha-se fora de tom, parecia plantada no centro da sala. Era incontornável e muito estranha. Como um extra-terrestre, ali no meio da sala.
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