segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Quando a caridade ocupa o espaço da justiça.




Tenho na memória narrativas sobre os operários do Barreiro, antes do 25 de Abril, viúvas pobres e filhos desamparados que eram ajudados pela comunidade, por antigos colegas do homem que podia ter sofrido um acidente de trabalho, ter sido preso ou ter morrido, em qualquer dos casos deixava a família invariavelmente desamparada. Viviam lá para trás dos quintais, para lá do poço,  num território interdito onde fui muitas vezes às escondidas, e de onde resgatei um gato que roubei à morte num caixote do lixo.
Era para esse lugar que viajavam as roupas que deixavam de me servir, e era de lá que vinham alguns trabalhos de costura feitos de retalhos, pegas e outras pequenas coisas, que apareciam no Natal e na Páscoa como agradecimento pela ajuda.
Foi nesse mesmo Barreiro que escutei o 25 de Abril, e que brinquei às eleições livres, agora que penso, era uma brincadeira invulgar, eu gostava tanto de política, e tinha só 4 anos, que uns vizinhos da minha Bisavó, achando graça a tão invulgar gosto, construíram uma urna em madeira, só para mim e depois alguém arranjava um boletim de voto ,  e eu brincava às eleições, votando invariavelmente PCP, pois todas essas pessoas eram do PCP.
E nessa altura acreditava-se que a justiça social seria finalmente corpo e letra de lei.
Lembro-me das Manifestações da época, a que fui aos ombros de amigos da minha mãe, e de gritar:
-Paz Pão Educação Habitação.
Aquilo que então se pedia  à  Revolução era  para não perder as pessoas como destinatárias principais das suas acções.
Aos poucos a justiça social foi ocupando o espaço da caridade, pelo menos no discurso.
Sou do tempo do início do Leite escolar, recordo uma família muito grande e pobre que levava leite para todas as crianças, as que andavam na escola e as que não andavam.
Cresci acreditando que uma sociedade equilibrada deveria garantir direitos a quem cumprisse deveres, e mais do que isso, à medida que fui encontrando o meu eixo, fui estruturando a ideia de que o estado deve servir para proporcionar a tão apregoada igualdade de oportunidades, corrigindo desvios sejam eles para o excesso ou para a carência.
Este tempo está em regressão, uma regressão que muitos negaram ser possível.
O estado foi capturado pelo domínio financeiro das corporações, a governação política é uma encenação cada vez mais inútil, mesmo para aqueles que até há bem pouco tempo a financiavam. A farsa democrática caiu, o enredo perdeu a coerência e a verosimilhança, ou talvez tenham apenas deixado de serem necessárias as personae públicas que durante décadas mantiveram  clandestinas as suas crenças em sociedades desiguais, agindo  e  discursando como falsos convertidos aos ideais de bem comum.
Agora, escancarada a verdade, descobertos e expostos os altares, assumem os rituais purificadores e sacrificiais com um despudor medieval, oferecendo a caridade em troca da perda de dignidade.
E é assim, sem  a vaselina verbal do politicamente correcto, que se escutam todos os dias barbaridades pronunciadas por medievalistas clandestinos que finalmente saíram do armário, e estão aí nas ruas a proclamar os seus ódios e desprezos ancestrais.
E nós, educados numa lógica pacifista deixámos de saber cerrar os punhos em cima das mesas, e em menos de um nada fomos expulsos da távola.
É do lado de fora que observamos o banquete canibalesco há muito preparado em segredo por bestas que se movimentaram entre nós sem nunca nos considerarem humanos.
E onde está o estado?
E onde estão os homens e mulheres bons do Mundo?
E onde estamos nós?
A caridade reocupa o espaço da justiça social, a humilhação é a condição necessária para merecer a caridade, a revolta terá como paga a fome e a expulsão, uma expulsão que terá ecos nas gerações mais novas, gerando uma legião de gente de ninguém que sem educação, sem paz, sem pão e sem habitação, desaguará na anomia, e se é verdade que é muito rápida a involução humana ( da civilização à animalidade) o contrário é   demasiado lento e necessita de várias gerações.



http://www.independent.co.uk/news/uk/politics/boris-johnson-says-superrich-are-putupon-minority-like-homeless-people-and-irish-travellers-8946661.html


http://www.thenation.com/blog/177241/cleveland-wal-mart-holds-food-drive-its-own-employees








10 comentários:

  1. Um grande texto.
    Foi por não termos sabido construir a Justiça a sério, que esta gentalha se permite brincar (e nem sempre) à caridadezinha.
    Um abraço

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  2. A transformação da doação em contribuição requer uma mudança de mentalidades que não se operou.
    Saudações.

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  3. A mudança de mentalidades ainda será viável? Questiono-me, numa angustia sem fim!
    Nem a "bendita" caridadezinha é tão genuína como a que refere ter existido antes do 25 de Abril.
    A hipocrisia é o deus (um dos...) do mundo moderno.

    Dado pensar que este texto devia ser lido pelo maior número possível de pessoas, gostaria de postar o respectivo link no meu blog, só que não o farei sem o seu consentimento.

    Aguardo, pois.

    Abraço.


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  4. A mudança há-de ocorrer, a humanidade só evoluirá cooperando.
    E esteja à vontade GL, partilhe, fico-lhe grata.
    Saudações

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  5. É um enorme prazer!

    Bom fim-de-semana.

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  6. E aqui cheguei vinda do blogue da GL. Um grande texto. Obrigada!

    Beijo

    Laura

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  7. bom texto. o final do ano e o aproximar do Natal faz com que algumas pessoas reflictam sobre o momento actual e se desfaçam em 'caridadesinhas temporárias' que lhes dão a sensação de dever cumprido. triste, acho muito triste...boas reflexões como esta podem ajudar à mudança

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  8. Fui convidada pela GL a visitar o seu blog o que fiz com imenso prazer.
    Obrigada pelo texto profundo cheio de realidades vividas por si. Infelizmente as mentalidades continuam fechadas.
    Um abraço

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  9. Sejam Bem-vindos os novos leitores. Obrigada.

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