quarta-feira, 27 de novembro de 2013
Tripalium vs Labor (texto 1)
A noção de trabalho é, como muitos conceitos, uma noção em transformação constante, é aliás muito significativo ter prevalecido, a palavra Trabalho, que deriva de tripalium, uma técnica de tortura que consistia no empalamento do condenado numa estaca que era presa ao chão através de uma estrutura feita de três paus, e não a palavra Labor, que apesar de significar esforço, poderá ter na sua raiz etimológica robur, que significa força.
A bíblia apresenta-nos o trabalho como uma condenação pós Adão e Eva, cujos os dias seriam passados, até ao momento da queda, numa inconsciência dourada e limitada(os portões e o desafiador aroma das árvores proibidas), esta suposta queda é apresentada como um desafio ao limite, a pretensão de abandonar o estado de inconsciência teria trazido à humanidade toda a sorte de aflição e sofrimento ( do parir até ao morrer). É portanto como castigo que o trabalho aparece na narrativa ocidental, e é nesta perspectiva que se manterá durante milénios. Será por isso que muitas classes sociais, ao longo dos tempos, evitaram o trabalho, impondo-o a outros menos favorecidos.
A ética protestante introduz a noção de salvação associada ao trabalho, deixando este de ser apenas um modo de sustento físico e passando a ser igualmente um dispositivo para derrotar o pecado, o tempo de prazer é o tempo do perigo, o tempo que pode ser entregue ao pecado, à preguiça, à luxúria, à gula, e quanto mais tempo o homem dedicar ao trabalho menos tempo dito perigoso terá disponível. Esta foi a chave que abriu os portões para a acumulação de capitais, trabalhar mais é salvífico e o lucro acumulado é a prova física da contribuição para essa salvação.
Não são só montanhas e fronteiras que separam católicos de protestantes, são as escadas para o céu,
Estas noções prévias são provavelmente do conhecimento geral, mas é importante recuperá-las quando queremos olhar para o trabalho, desemprego, salários, direitos, no século XXI.
Mas afinal o que é trabalhar no século XXI?
Houve um processo de aniquilação da sustentabilidade individual. Para que o homem-consumus se reproduzisse foi necessário abandonar e promover o abandono de todas as formas de produção que não visassem a comercialização em massa, em duas ou três gerações passámos a ter uma população mais urbana do que rural, mais no sector terciário e muito menos capaz de se imaginar a produzir os seus próprios alimentos, o seu próprio vestuário. Desempoderaram-se as pessoas dos seus saberes ancestrais, tornando-as dependentes da aquisição permanente de bens.
A própria noção de trabalho passou a estar directamente ligada ao trabalho executado fora do perímetro doméstico, trabalhar significaria despender esforço numa cadeia de produção tendo como retorno dinheiro que se converteria em bens ou serviços.
Este projecto de sociedade teve consequências profundas na organização familiar, na divisão do tempo, na forma como se entende a autonomia financeira e como fomos diabolizando o tempo livre, fruto de uma catequização protestante activa e agressiva.
A a mecanização. a robotização e a informatização evoluíram num passo acelerado e a força humana tem vindo a ser substituída pela máquina, esta transformação expectável não promoveu a libertação humana do trabalho/tripalium, como muitos ambicionaram, liberto do trabalho, catequizado acerca dos malefícios do tempo livre, incapaz de se sustentar sem ser através do consumo, o ser humano está perante um desafio muito semelhante ao último período glaciar.
O trabalho já não vai ser a estrutura central da vida, pelo menos se entendermos trabalho como um esforço que se emprega numa estrutura produtiva que em troca cede créditos(moedas) que permitam a aquisição de bens. Esta é a mudança de paradigma, como consequência da busca incessante pelo lucro / livre de custos sociais) as pessoas estão a ser substituídas por máquinas, até aqui nada teria que ser assustador se o trabalho é uma condenação, livrar-mo-nos dele deveria ser uma conquista, mas a dependência e o afastamento da noção de sustentabilidade que entretanto gerámos, incapacitou-nos para aproveitar esse tempo agora libertado.
Talvez possamos aprender a fruir, talvez possamos aprender a cooperar, talvez possamos aprender a envolver-mo-nos em projectos que potenciem a nossa comunidade, este tempo caótico tornar-se-a numa patologia social caso não seja reorientado, e esta reorientação passa por compreender que a noção de Trabalho se transformou em definitivo.
Pessoalmente sempre preferi o vocábulo labor, as palavras têm sabor e cheiro e labor cheira a pão a sair do forno, enquanto trabalho cheira a enxofre.
O convite que aqui faço não apela à resignação, nem tão pouco pressupõe que a tragédia do desemprego deva ser olhada como uma oportunidade, como afirmou um senhor com responsabilidades políticas, o convite implica-nos a todos
na percepção de um tempo que pode assentar numa visão diferente, mais harmoniosa entre esforço e prazer, recuperando saberes antigos que proporcionem uma sensação sustentada de independência. É um convite a que repensemos a nossa forma de encarar a ideia de trabalho, recuperando a dignidade das tarefas que garantem o dia-a-dia de uma família, comunidade, mesmo quando o seu desempenho não for recompensado através de moedas, é imprescindível validar as pessoas e os seus variados contributos, só assim se ultrapassará este combate entre direitos sociais e assistencialismo, só assim as comunidades iniciarão um caminho de verdadeira cooperação, mesmo que o estado se desmantele, pessoas conscientes das suas aptidões e possibilidades serão capazes de finalmente e verdadeiramente afirmar "O ESTADO SOMOS NÓS".
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Gostei da evolução do conceito de trabalho através dos tempos.
ResponderEliminarConvite pertinente, o seu! Repensar o trabalho é fundamental, só que o sistema e os vicios/interesses instalados dificultam seriamente a alteração de mentalidades.
Optimo dia.
Obrigada GL.
ResponderEliminarRepensar o tempo, as tarefas, as prioridades e necessidades, acredito que podemos evoluir, mas só se quebrarmos os muros por dentro de nós.
Trabalho ou Labor, uma coisa é certa, é e será sempre mais importante do que o Capital, ainda que tenhamos de "trabalhar" muito até que o tempo o venha a provar.
ResponderEliminaro trabalho e o capital pertencem ao mesmo paradigma, discutir apenas o valor relativo de um e de outro é redutivo, o tempo e a vida vão para além disso.
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