quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Haverá um universo da infância?

Um menino de seis anos, agitado, conflituoso, sem foco, olha para mim e conta-me: - Professora Rita, o meu padrasto à noite, diz-me que se eu não adormeço depressa vem lá o Freddy Krueger, e antes de eu ir para a cama mostra-me o Freddy Krueger no computador, e eu escondo-me na cama, num cantinho que tenho lá. Achas que o Freddy Krueger sabe onde eu vivo?. Nunca levei um murro físico no estômago, mas este momento foi como uma carga de tareia de ficar estendida no chão. O que se passa com as pessoas adultas? O que se passa com as pessoas? Apresso-me a responder ao menino que o Freddy Kruegger não existe, falamos de filmes e efeitos especiais. Um colega diz-lhe que são só operações plásticas e eu lá desfaço a ideia, próteses de cinema não são operações plásticas, são máscaras que se põem e tiram, são maquilhagem, lá prometo que vou mostrar-lhes o que são próteses para cinema. Mas a inquietação não desaparece por completo. -E o Papão, também é do cinema? Entramos numa zona complicada, a fantasia ao serviço do medo, e as minhas dúvidas são imensas. Se olharmos para as narrativas infantis, pré-disney, encontramos a crueldade em estado puro, sem açúcar. A crueldade humana deve ou não ser ensinada às crianças? Qual a função da crueldade na construção da personalidade? (vide Bettelheim, Bruno - Psicanálise dos contos de Fadas.Bertrand Editores 2005 (1ª Edição 1975). O mal, ao contrário do que gostaríamos de acreditar, é humano, esta é uma coisa complicada para ensinar às crianças, se o mal fosse apenas obra de seres fantásticos, as coisas seriam mais simples, os maus seriam sempre e só os outros, os não humanos, os gigantes, os ogres, os zombies. Sou pessoalmente, muito crítica, da disneyrização dos contos infantis, arredondar as histórias,ao invés de proteger,torna as crianças mais vulneráveis, pois nada no seu universo as predispõe para o reconhecimento do mal e da crueldade humana. Mas existe uma linha divisória entre preparar para o mundo, feio, cruel, onde os maus são humanos como nós, e a perversão de utilizar referências do terror para adultos ( claramente classificado para maiores de 18 anos) como mecanismo de controlo através do medo. Este gesto é doente, não tem fundamento pedagógico que o defenda, e mesmo em tempos turvos, ou , sobretudo em tempos turvos, é imprescindível separar os gestos que nunca se podem configurar como gestos bons e os gestos de raiz boa. Contar a uma crianças que os lobo comeu o porquinho que não construiu a sua casa com paciência e empenho, é potencialmente transformador, leva a ponderar a atitude, aterrorizar uma criança com imagens realistas, cinematográficas, de um zombie com mãos de faca, é sempre e só malvado e perturbador.

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