segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Cortinas

Richard Tuschman
(fotografia inspirada pela obra de Edward Hopper)



As mulheres sussurravam.
Os miúdos tentavam passar-lhes por entre as pernas.
A desconhecida do 1º direito podia finalmente ser vista.
Mudara-se para ali ainda o prédio estava em construção.
Algumas pessoas garantiam que se teria mudado durante a noite, a verdade é que ninguém sabia, ou vira.
Alimentava-se, semanalmente as compras eram deixadas à porta.
Não recebia correspondência, nem mesmo contas.
A desconhecida do 1º direito era invisível.
As suas janelas jamais se abriram.
Naquela manhã solarenga um estrondo irrompeu pela rua.
Um pedaço de papel, meticulosamente  preso ao fecho do vestido, atestava o motivo:
"Estava cansada de enrolar os dias e desenrolar as noites."
Na casa foram encontradas mais de 30 telas pintadas em cortinas, todas elas retratavam paisagens enquadradas por uma janela, montanhas, escarpas, campos, aldeias, e sempre aos pares, a mesma imagem em modo diurno e em modo nocturno.

https://www.youtube.com/watch?v=A-Tod1_tZdU



sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O Velho, o desafortunado e as crianças.

Casper  David Friederich

http://youtu.be/kMpdQycz9g8




O desafortunado em fuga.
O velho habituado a despedidas.
A jovem e as crianças coladas ao porto,  ao ultimo porto.
A ausência.


- Perdi outra vez, desta vez perdi tudo, nem sei como aconteceu.
- Tu não sabes mas eu sei, acontece sempre da mesma maneira.
- Não, desta vez foi diferente.
- Não, não foi. Começaste a ganhar e aquele entusiasmo tomou conta de ti, e já não eras tu a tomar decisões, era o entusiasmo que as tomava  por ti.
E a Ema? Onde ficou? Porque é que não veio contigo e com os miúdos?
- A Ema ficou lá.
- Lá onde homem?
-A Ema, foi a Ema que escolheu ficar...
-Avia-te explica, não tens muito tempo.
- Não há nada para explicar, preciso de um bote para chegar ao barco ainda esta noite, tenho que levar os miúdos.
- Tu não podes levar os garotos e a Sara é muito novinha para tratar de tudo, volto a perguntar, onde está a Ema?
- A Ema perdeu a Sara na roleta.
-





domingo, 27 de julho de 2014

As Lições de moral dos invertebrados. A ética segundo as hienas.





Quando um acontecimento/ facto abala a relação de forças entre vitoriosos e derrotados, poderosos e submetidos, é um bom momento para reflectir acerca da perspectiva validada pela comunidade sobre ética e  moral.

Sabendo que ambas dizem respeito aos costumes, provindo uma do grego (ethos) e outra do latim (mores), é   possível estabelecer diferenciação, apontando para duas heranças, a aristotélica e a kantiana.  A finalidade da  Ética é a busca por " uma vida boa, com e para os outros, em  instituições justas" ( segundo Paul Ricoeur) e a Moral  é o conjunto de preceitos, normas e obrigações que regem a conduta humana em sociedade.
Enquanto a Ética trata do Bem e do Mal, a Moral ocupa-se do Certo do Errado, a produção da ética é a reflexão  e a da moral  a acção.
Se me aventuro por terras que não são minhas é porque a mente dispara memórias recentes de discursos proferidos por figuras conhecidas, repletos de culpas, castigos merecidos, dedos em riste, pretensões de superioridade moral e desprezo congénito.
 Quem são os moralizadores mais escutados, que moral os rege, que ética os sustenta?
Como suportaríamos,  na nossa comunidade  e no tempo presente, a noção de "Vida boa, com e para os outros, em instituições justas"?
Que perguntas teriam resposta fundamentada através de acções que traduzissem a moral que nos rege?
Esta ausência de questionamento dissociou a prática da moral,  ora a moral não é senão a ética em acção, portanto, deveria ser o seu corpo, daí que , ou a moral se alterou sem uma consciência colectiva que a  tivesse validado ou então a prática denuncia uma moral que poucos se atreveriam a verbalizar ainda que ajam em concordância.
Dir-me-ão que os tempos sempre foram turvos e que a distância entre o verbo e o gesto sempre reflectiu a necessidade de um código moral e de sua regulação e vigilância através da lei e da sua aplicação mas eu não habito outro tempo que não o meu e digo-vos que se me questionassem não saberia atestar onde está o Bem ( ética) e o Certo(moral) pois há em em mim um abismo de onde não sei sair sem recorrer a Manchaeus, e este retrocesso depois de bebedeiras niilistas e aspirações cépticas é aterrador.
Oiço o riso das hienas com o mesmo nojo com que ouvi as lições de moral dos invertebrados.









quarta-feira, 23 de julho de 2014

A matéria das madrugadas

Balthus
Sleeping Girl



https://www.youtube.com/watch?v=PURIZRhHyE4







Se o néon apontasse a saída de emergência.
Se o comboio se demorasse mais uns minutos em cada estação
se os dias fossem feitos da matéria das madrugadas,
a madrugada do acordar,  outra que não a madrugada do não dormir.
Se a luz crua da manhã não revelasse o odor a carne em putrefacção,
a mesa posta, a toalha branca e a carne podre.











terça-feira, 15 de julho de 2014

Desendeusaram-nos o mundo.

Francis Bacon
Figures in a landscape.





Sabes, desendeusaram-nos o mundo
depois declararam um império de verdades comprovadas,
arrancaram a ilusão, abortaram a esperança
e legaram-nos a sombra sem redenção.
Tinha na tua boca o  universo
mas elegemos o silêncio

https://www.youtube.com/watch?v=yrcz_l8B7-w&list=ALBTKoXRg38BDV4CBZV5_sZBxx9qle5j1_&index=2




sábado, 12 de julho de 2014

tenho por hábito falhar



Tenho por hábito falhar
(palavras submersas para um filho adulto)

Troquei o regaço pelo regato e mergulhei
desaguarei quando vencer o lodo
espera-me numa qualquer orla
mesmo sem me veres.
posso não chegar
tenho por hábito falhar portos
tenho por hábito falhar
tenho por hábito falhar
arrancarei avencas no regato para te levar
descerei a correnteza de mão cerradas
posso não chegar
que o regato é traiçoeiro
e o mar é aberto
e eu tenho por hábito falhar.
Henri Le Sidaner.






https://www.youtube.com/watch?v=1k_DF_RohcM
 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Reféns da chuva.



Não fora a chuva e teria perdido aquele pedaço de vida dos outros.
O carro parado, o trânsito cerrado, ou seria ao contrário.
O tempo parecia congelado, nada se movimentava.
Dentro do carro verde seguiam quatro pessoas.
Um homem conduzia, uma mulher ao seu lado, duas crianças no banco de trás.
O homem tamborilava no volante, a mulher soltava e prendia repetidas vezes o cabelo.
As crianças trocavam de lugar, parecia um jogo.
O homem roía as unhas, a mulher mordiscava uma maçã verde, as crianças guerreavam.
A chuva mantinha-nos a todos reféns de um tempo sem narrativa.
O homem acende um cigarro, as janelas do carro permanecem fechadas, as crianças batem no ombro do pai, a mulher vira a cara, no sentido contrário ao do homem e cerra os olhos com visível força.
Do lado de cá, no passeio, invade-me uma estúpida vontade de correr até aquele carro, abrir portas e deixar sair os sufocados. A convenção mantém a distância higiénica.
O homem abre a janela, as crianças esticam as mãos para fora do vidro, a mulher tapa a cara com as duas mãos.
Um autocarro avança sobre as poças e o sequestro acaba.


https://www.youtube.com/watch?v=2sZzJAxfD-4

terça-feira, 20 de maio de 2014

Turmoil










            Deixo que o dia se ponha em mim.
            Anoiteço e ao meu redor a luz ecoa.
            Este era o tempo da palavra apaziguar
            Mas há o remoinho sobre a cidade
            E o remoinho sobre os oceanos
            E o remoinho sobre os campos
            E o remoinho sobre nós.
           Grito alvorada para escapar à noite.



http://youtu.be/BTrGowDPjBk

   

segunda-feira, 12 de maio de 2014

De algumas mortes sai-se vivo.



De algumas mortes sai-se vivo.
Mas não de todas.
Morro sempre num domingo, à tardinha, depois de tudo, não quero manchar os pequenos-almoços na relva.






                                             The Wounded Table
.
                                              Frida Khalo


https://www.youtube.com/watch?v=D7iLERCEznI

segunda-feira, 7 de abril de 2014

"Sounds like revolution"

Porque no meu peito crescem medos e nas minhas mãos dormem fúrias.
Não espero.


"We play, follow the leader
Hoping to learn something we never knew.
They say
One Two Three redlights
So we stop believing the green will come for you
So you wait and we wait for the red to
Somehow disappear...
And we stand so paralized by these
times that predictS our greatest fears
But deep inside you know you gotta go
You hear
echoes of revolution
Lingering in the air
This counts for more than JUST being alive
Being alive
More than step aside waiting for the green to take you there

So rise my friends take my hand
lets all go to this promise land
Pick up a pen
make your demands
tell them how freedom can reign again
unchain your voices sing me a song
that will live on and on long after we're gone
songs like



I'll sing u a song powerful and fearless
twisted enough to throw silence down your throat and crack on your
higher notes
I'll sing you a song and teach you how to turn it around
and build it back to the idea in which it came from

These are manisfestation of truth
translating trouble day dream
into effortless sermons of perfect night vision
I'll sing you a song that tells you nothing like lullabys
of warning labels
Will ook nothing like multiple choices
Will sound like nothing like pointless prepositions put there on

purpose of control in you and waisting your hard earned precious

pending time
I'm searching for words in poems that wont confuse you
That will confirm elements of life you already know.
I want to give you a testemony that tells you
That everybodys gonna get there eventually
Maybe not where you are
but close enough for them to see the promise land

I'm searching for words in a poem that wont make you see higher
or farther or make you think too differently from what you already
thought was an epiphany
a path and obvious and inevitable argueble truth
See
We want
magic and bounds and billion of dollars that lasts forever
We want to discover our demons dressed them in white
twist their soul on a pedestal and turn them back into angels
We want drama and high speed risk
We want to live our days in the echo of adrenaline high and
tetesterone trips
without  the side effects of impotence and weakness

George Bush who wants to win the war without the protest
the bad press and the death tolls
Thugs
You want to fire your guns without the risk of hitting innocent
bystanders

We want to survive without the test the tricks, the false hope
the self help books
the pop
the rock  
and the hip hop videos
We want to survive without the journals and the diaries and the
reality tv shows
as if the shit in our lives aint real enough

Wall Street
you want all your stocks to rise
Guys
You want to pull out in just the right time
And ladies
You want to invest in that sure thing right?
You need him to exist somewhere
I think I've found him but know I'm still waiting to exhale
I want him to wake me up before the last dawn of the summer time
thrust to the waves
pass the motion of rip tide
just so we both can see the sun rise (and the ribbon?)
and the cloudless sky

The simple things I want to make my father proud
and my mother understand because they know I chose right this time

You see its quiter than sleep
And this is the stuff in life that can make you believe
Thats just one turn westward can fast forward all your desires
and dreams
into this clear as day reality
I know the world has never been that easy
But consider the choice of slowing down
to let the air stuck in this moment run
FREE

These are unchained voices
singing you songs of familiar melodies
teaching you how to hit that note above and beyond Middle C
Yeah
And your baritone singing background vocals
songs full of lala's and do re's
Put there for purpose filling in the blank beats and melody created
and the tag says
right NOW
YES YOU!
Showing you the simple ways to see through all the colours of

unsolved rubiks cube
Reconfirming elements of life that you already know
Sing me a song full of false start and flat notes
and broken bridges
and teach me how to turn it around
And we will sing those songs
and resusitates our society
through hard beats that justify humanity
collectively critally cross culturally
A song that teaches us
That reminds us how
how to just breathe
just breathe"

https://www.youtube.com/watch?v=RmgNph48GmY

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Cuidando dos meus demónios.

E já não sei se os demónios dançam
ou se danço com os demónios

E se há algum azul
se desembarcamos num porto
ou se o alto mar é o meu leito.

E já não sei se os demónios dançam
ou se danço com os demónios.

domingo, 19 de janeiro de 2014

As últimas palavras.

Raiava o dia quando lhe bateram à porta.
-Vimos confiscar as suas últimas palavras.
-Mas eu...
-Entregue-as de livre vontade.
-Mas... eu...
- Está a tornar as coisas mais difíceis, vamos ter que lhe tirar as palavras recorrendo à força. Colabore connosco.
- Mas...
Tinha sido um processo gradual. Primeiro começaram as falhas episódicas, depois ela própria tinha oferecido palavras ao vento, esperando vocábulos novos trazidos pelo sopro longínquo, mas a resposta chegava em forma de silvado sem contorno ou verbo.
E depois vieram apreender-lhe as primeiras palavras, dessa vez enrolou-as em papel de seda e entregou-as como se entregasse um filho, da segunda vez que vieram fazia sol mas já não tinha a palavra luz.
Depois desta última visita, tornou-se quase impossível contar o que lhe aconteceu.
Sem verbos, deixou se ser, restava-lhe estar. S
entou-se debaixo da velha pinheira mansa, alegrando-se em longos sorrisos e fechares de olhos, conhecendo na pele as transformações trazidas pelo vento, pelo sol, pela chuva e pela lua.

http://youtu.be/2XbNt5ahKPM

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

E quando me contar, hei-de fazê-lo ao contrário.

E quando me contar hei-de fazê-lo ao contrário.




          E, aquele
          que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.
Manoel de Barros





Narro-me de trás p'rá frente, e não é uma metáfora, é ilustrativo.Foram precisas décadas para descer ao poço.Na superfície, deixei-me gazela sacrificial degolada.No fundo do meu poço estava o meu nome e um punhado de pessoas que comigo o partilhavam.E um dia, depois de ter filhos, tive irmãos, muitos e maiores do que eu, e a frátria que me era uma terra desconhecida, passou a ser uma terra quente mesmo  mantendo a distância, nasceram-me oito irmãos como num trangolomangolo ao contrário.E nasceu-me um pai morto e morreram alguns vivos que antes tinham nome e o perderam.E o tempo perdeu a linha e elipsou-se numa verdade desprovida de verosimilhança, e desde então procuro rectas que nunca o foram e perco-me em galerias ascendentes e descendentes, o tempo que não tinha começado até há alguns anos, aguarda agora um desfecho para se sincronizar com o tempo contado nos relógios e nos calendários.(http://www.youtube.com/watch?v=dTADU0iMnF4)