sábado, 8 de outubro de 2016

Ruminar Ruminar até digerir



O mundo entra-nos pelo estômago adentro, em golfadas ou em socos,e entra inteiro e sem mastigação prévia,o mundo enfarta-nos e de tão enfartados, queda-mo-nos inertes como uma jibóia acabada de deglutir um javali.
Mas o mundo é indigesto e fica cá dentro a remoer.
O miúdo que estava a fazer um mestrado na católica e que passava as noites a ver vídeos no youtube do tipo que deu origem ao filme "o lobo de wall street" e de manhã chegava ao call center, como quem chega à bolsa, numa excitação deslocada para quem ía apenas tentar impingir pacotes de televisão e internet. E outro que se levantava, a gritar:
- Vai sair venda! Vai sair venda!
E o miúdo que estudava antropologia e que não suportou as sucessivas investidas humilhatórias.
E a miúda overdressed que tinha sempre muitas dúvidas por esclarecer e só as conseguia esclarecer em reuniões relâmpago.
E o homem que fazia aquilo há mais de dez anos e que se orgulhava de já ter vendido quase tudo a quase toda a gente, desde seguros de saúde,  que não seguram, a internet, em lugares tão remotos e isolados que nem o sinal do telefone chega com qualidade aceitável, a viagens de sonho para destinos de pesadelo.
E o rapaz e cabelo comprido que o levava sempre bem atado, como se ao atar o cabelo se se atasse a si próprio à realidade.
1,45€ à hora.
E o rapazinho como nome bélico a gabar-se da quantidade de licenciados e mestrandos no call center.
1,45 à hora, para alguns, e no melhor dos casos, 3,46/hora.
e eu. eu ali a tentar saber se nasci sem garras ou se as mantenho recolhidas por vontade própria.
Um dos momentos mais complexos na minha relação com o cristianismo foi compreender a superioridade da virtude daquele que sabendo como ser asqueroso escolhia não o ser, enquanto o ingénuo que jamais praticara o mal era apenas um parvo, até aos olhos de dEUS.
Eu, que descobri que algumas personagens contaminam o sangue das pessoas que as acolhem.
E primeiro o nojo, depois a adrenalina, depois o pânico. Tudo numa linha temporal de onze dias.
Onze dias que consubstanciam uma descida ao inferno de quem não tem nem terá direitos.
Logo no primeiro dia uma proposta:
- Ninguém vai almoçar de faca e garfo no restaurante,pois não?
(claro que não, ninguém teria sequer dinheiro para tal)
-Então se preferirem, almoçam em 20 e depois saem 40m mais cedo ao final do dia. O que vs parece?
E todos, todos, aceitámos. E nesse dia saímos 7 minutos antes da hora estipulada no contrato. ou seja, prescindimos de 40 para ganhar 7, logo, perdemos 33. Mas pouco importa, até porque como disse alguém, os sete minutos no fim do dia fazem mais falta do que os 33 a meio.
Como se viver, respirar, fossem maleitas que se devem evitar em tempos de guerra.
E tudo é escutado, atrás de mim, um tipo ouve o meu diálogo, e no fundo da sala um grupo de 4 gajos vão ouvindo aleatoriamente chamadas à caça de erros ou de pérolas.
 E depois o briefing matinal que começou por fazer parte do horário de trabalho e 3 dias depois já nos era pedido que viéssemos mais cedo para que o briefing( que era, diziam eles, uma coisa para nos ajudar) não interferisse no tempo real de trabalho.
E quase todos aceitaram, quase porque eu já não pude, chegar antes implicava sair uma hora mais cedo de casa, e não poder cuidar dos meus filhos antes de irem para a escola. Foram compreensivos mas avisaram que teria que dar o "tudo por tudo" a partir do momento em que entrasse em linha.
Por aqueles dias tinha guardado a merda da alma numa caixa, certa da sua inutilidade e da sua improdutividade.
E com a bicha guardada lá fui olhando satisfeita para as garras e senti prazer ao passar a língua pelos caninos afiados.
E vendi, nem sabia que saberia vender fosse o que fosse, fosse a quem fosse. Deu-me especial gozo o péssimo negócio que impingi ao senhor que sentindo-se superior me declarou que estava a passar uns dias na quinta e que não fazia ideia porque razão me estava a ouvir , ele que não tinha disponibilidade para ouvir ninguém,   e a mulher anti sistema que convenci a ter pelo menos internet, porque para lutar contra o sistema é preciso conhecê-lo, e depois sufoquei.
 Foi tudo demasiado rápido.
E um dia não consegui, depois de falar para várias pessoas que tinham entretanto morrido, depois de me ter desculpado ao homem que me pediu para o deixar em paz pois ele e a mulher estavam desempregados e a filha também desempregada lhes tinha deixado lá uma neta, e a neta até havia de gostar de ter televisão mas não podiam e sabiam que não havia futuro para eles por já terem mais de 55 anos. E eu, sem rebate, sem técnica, sem rede, prometi-lhe que não mais o incomodaria e falei-lhe de fé, uma fé que perdi, mas que queria tanto ter para dar aquele homem de voz triste com sons de neta por trás.
E olhei para as garras e soube-as desgastadas.
Levantei-me, cruzei a sala repleta de pequeníssimas cabines umas em cima das outras de gente que entre a voz sedutora da linha quente e o entusiasmo de uma wall street de papelão, vai vendendo aos outros o que jamais compraria.
Pedi uma reunião  e entre sorrisos e elogios anunciei a saída. E vieram vários seniores,  tentar convencer-me a ficar e finalmente uma senhora simpática disse que não teria direito a receber nada e num volte face que não compreendi veio outro dizer-me que afinal havia uma maneira e que podia ir mas que jamais poderia contar que recebera, caso contrário estaria a criar um precedente grave.
E pagaram-me, tudo, até as comissões,e ligaram-me várias vezes a perguntar se quereria voltar.
Mas a bicha que mantive na caixa, voltou e o confronto entre a sua ingenuidade prévia e a forma reptilínea  de quem já escolheu ser asquerosa, metamorfosearam-na com uma tal brusquidão  que já não pode regressar ao lugar primeiro.
E isto que aqui escrevo, não é uma denúncia, nem um desabafo.
É um obituário.






2 comentários:

  1. Que saudades tinha/tenho de a ler.
    Que saudades da pedrada no charco, da coragem de gritar a revolta, da lucidez que nos inquieta.

    Fica a gratidão pelo desassombro.
    Fica o abraço do vazio.

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  2. Mais uma vez vim até aqui. E virei, uma vez e outra, e outra ainda na expectativa de a ter de volta.
    Li, pela enésima vez, este seu texto. E é sempre o murro no estômago. E é sempre a vontade imensa de lho "roubar", de o publicar no meu simples espacito.
    Um dia, talvez quem sabe mo permita, e publicá-lo-ei - dando a autoria, a fonte - numa tentativa de agitar/acordar/ressuscitar algumas consciências mortas ainda susceptíveis de serem recuperadas.

    Tenha um bom Ano. Que a "pedrada no charco" não deixe estagnar a água putrefacta em que nos engole, sem dó.

    Abraço grato pela lucidez, pela coragem, por ainda a saber por aí, algures.

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