quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A premeditação do caos.











-Pára de me olhar assim- disse a mulher ao gato.
A roupa separada e enfiada na máquina, o detergente na gaveta, o amaciador no meio e a pastilha anti calcário no tambor.
Quase tudo estava afinado.
Os miúdos dormiam, o cão ladrava zeloso a quem ousasse aproximar-se do muro.
E o gato ali, de olhos abertos a fitá-la, no cimo da bancada, de igual para igual.
Eram quatro da manhã, ela riu-se e disse ao gato:
- Se vivêssemos na idade média, queimavam-me. E não, não era por isso, era só por estar a a arrumar e a limpar a estas horas, são horas de bruxa.
A mensagem dúbia no telemóvel provocou-lhe um ligeiro sorriso.
Podia regressar ao sono.
Na manhã seguinte, de novo o gato, a mulher a passar as camisas dos rapazes e um vestido para si própria e o gato, em cima da tábua, a olhá-la.
De manhã limitou-se a enxotá-lo.
- Vai lá para fora, vai ter com as tuas gatas!
E o dia corria entre os afazeres cronometrados.
Domado o caos exterior, mergulhava.
Primeiro foram as derivas poético-marítimas do economista e quando este invocou a Teologia da Prosperidade, a redenção deixou de ser possível.
 Decretou-se um fim.
O gato escutou-a.
-O pior de ter um amante é não poder chorá-lo quando tudo termina.
Sorria muitas vezes sozinha.
E caminhava depressa, caminhava muito e depressa, como se o seu passo a levasse a um lugar de esquecimento, a um lugar de não memória.
As palavras, descobriu, demoram muito mais a sair da pele do que o toque.
Esfregava o soalho quando todos dormiam, desculpando-se com a imperiosa necessidade de garantir que durante algumas horas ninguém ali passaria.E o gato, aninhado entre o santo e a taça da tralha, a olhá-la, o tapetum lucidum a denunciá-la.
- Hoje ainda não disse nada, achas que é outro endgame?
Não resistiu ao fluxograma linear do cientista e passou a ferro toda a roupa da semana numa única madrugada.
Saiu ainda de noite, ignorando o estado da lua, as marés, os avisos de intempérie.
Abraçou a árvore e sentindo a resina pegajosa sorriu.
Entrou de novo e olhou de soslaio o gato.
- Hoje não há limpezas, entendes? Amanhã sigo para a capelinha, espero que a velha não esteja por lá, ela tem um olhar parecido com o teu, tu pelos menos não cochichas. Vai às tuas gatas!



https://www.youtube.com/watch?v=v0nmHymgM7Y


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Saber tudo.

O Sonho de Amélia
Paula Rego




Era manhã, não muito cedo, lentamente o calor abandonava as pedras. As três ciganas rodearam-me e quiseram que as escutasse:
_ Anda cá linda, não fujas, vamos contar-te tudo.
Elas de negro e eu de vermelho, as três à minha volta,  quase coreografico.
"Le Rouge et le noir"
Disse-lhes rindo, escapei-me em passos rápidos, a realidade aguardava-me.
Ainda brinquei, dizendo que não queria saber tudo.
E a realidade ali, ao virar da esquina.
E saber tudo dava mesmo muito jeito.
No final do dia fiquei a saber que é possível manipular os neurónios, criar memórias fantasma e extrair memórias problemáticas.
Compreendi que ou escuto o canto das ciganas ou me ofereço como cobaia humana para que instalem fibra óptica no meu cérebro.
Resta uma dúvida, não sei que operadora escolher.


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Homem ao mar

                                               
                                             "o naufrágio" Maria Helena Vieira da Silva


                Não quero palavras, nem as quero ver rodopiar como malabares.
                Se o pai do menino morto e desaguado na praia era traficante, se entre os inocentes caminham perversos, se a religião deles dominará a europa, se os auxílios negados aos gregos forem agora entregues aos sírios, se as fronteiras protegem ou aprisionam, se a fome é razão válida para pedir protecção, e toda a colecção de ses que o espírito assustado conseguir produzir.
                 Ficam as perguntas de um dos meus filhos mais novos:
                 - O que é uma pessoa ilegal, nasceu sem autorização de quem?




       (https://www.youtube.com/watch?v=cNpCx_TDO24)
   
             

domingo, 10 de maio de 2015

Estar às ordens da noite.

The orders of the night.
Anselm Kiefer










Quando é que abandonámos o desejo ?
Em que momento escolhemos a morte?
Porque nos prostrámos perante as forças da noite?
Será esta desistência uma consciência aguda do provável colapso civilizacional?Como se pode narrar a um filho que a vida dos humanos tem valor diferente dependendo do lugar onde se  nasceu?
Como dizer-lhe que alguns humanos acham possível deixar morrer outros humanos afogados num mar sem esperança para lhes ensinar a não desejarem fugir da morte e da guerra e da fome e da tortura?
Que caminho é este onde a centelha individual só brilha se houver dinheiro para o azeite de uma lamparina falsa?
Quem são os inúteis?
Quanto vale  aquilo que nada vale e quanto vale o que dizem ser valioso?


















domingo, 12 de abril de 2015

o lugar da misericódia

Georges Rouault.


Pedir misericórdia.
uma suspensão das rígidas regras
permanecer de pé apoiado.
Pedir misericórdia
o pequeno punhal
misericórdia
o lugar da misericórdia

segunda-feira, 6 de abril de 2015

A indiferença à dor.



A indiferença à dor.

Sou de sobressaltos mediterrânicos com ecos de cigana, cheiro a mangericão e lamentos mortais de finais de ópera.
Se guardasse uma faca na liga haveria de a brandir qual fadista imaginária.
Da tempestade do meu nome conheço um tumulto de mar encapelado sem promessa de bonança.
Mas a idade, o cansaço, e as lutas perdidas estão a deixar-me numa apatia de paquiderme e parasita.
A dor não alimenta a raiva por muito tempo, ao fim de alguns golpes o corpo endurece e a alma fecha-se,  silenciados os ais sobram tempos lentos e graves. Cuidei que este fosse o tempo da pacificação, desejei esta transformação como quem espera pelo sol. Um cabelo que se acinzenta numa alma que se aquieta.

https://www.youtube.com/watch?v=01Q8o4X0MKY
John Everett Millais

sábado, 4 de abril de 2015