sábado, 20 de julho de 2013

António Raul





http://youtu.be/0vzIFrfvbh0








                                                           ( Ramon Casas)



Havia naqueles dois qualquer coisa de desfasado, a forma como se tratavam, a irrepreensível arrumação da casa, a ausência de televisão, computador ou telemóveis, eram ao mesmo tempo uma  crença e uma fuga.


Os filhos tinham nascido numa altura tardia, mas nem por isso alteraram a rotina impenetrável dos pais.

Os rapazes, com precisamente nove meses de diferença um do outro, tinham partilhado a casa com os pais até terem idade para frequentarem o colégio militar em regime interno, depois uma residência reservada a jovens da obra, ali para os lados do Campo Grande, serviu-lhes de abrigo até terem cada um a sua vida, um partiu para Espanha, onde fez o curso medicina e o outro entregou-se ao serviço de dEUS, até ter sido apanhado por uma mina numa escola campal no meio de Moçambique.

Eles permaneceram na mesma cidade que os tinha visto nascer, os anos, a revolução e as mudanças de regime, fizeram-nos perder primeiro o emprego dele como tesoureiro da empresa da família e depois, gradualmente, os bens, mudaram de casa e confinaram-se a um T1 atafulhado de mobiliário antigo, imponente e sufocante.


A horas certas serviam um chá, ainda no serviço de prata, e nas porcelanas mais finas  e delicadas, fora a única refeição que jamais quiseram eliminar, todas as outras eram habilmente contornadas, mas o chá mantinha-se.

Preparava-se o bolo, as pequenas sandwiches de pepino, o Earl grey ( pelo menos a lata  era da Twinings) um fiapo de leite e ambos se sentavam frente a frente, todos os dias, trocando palavras triviais, sobre o tempo e os tempos. 

Ela evidenciava um alheamento que poderia ser quase encantador, nada sabia sobre política,  negócios, a vida das vizinhas, literatura, música ou qualquer outra coisa.

Quando ele a interpelava a discussão não era estancada sempre com a mesma  frase:
- Sabe, o meu adorado Pai, disse-me várias vezes que os meus caracóis dourados não durariam para sempre e que talvez me fosse útil ler Eça, agora já não devo ir a tempo, pois não? O que lhe parece  António Raul?

Ele cumpria uma austeridade implacável há mais de trinta anos.

Trabalhou secretamente na Casa Frazão, sem que ela sequer imaginasse, vivia durante a semana num quarto alugado, na Rua do Arsenal, regressando de comboio à sua pequena cidade todas as sextas feiras.

Foi nesses tempos que conheceu a Espanhola.

Na verdade ela nem era Espanhola, mas como tinha por hábito comprar tecidos com bolas e pintas, sobre fundo liso, vermelho ou preto, ele alcunhara-a com Espanhola, aliás, fazia questão de a atender sempre em espanhol.

Foi no final dos anos oitenta que lhe perdeu o rasto.

Um dia ela entrou na loja e disse-lhe :
- Mira Raul, ahora me voy a vivir muy lejos,  muy lejos de ti. Adiós. 
Ele ainda saiu da loja atrás dela, mas um táxi esperava-a e arrancou acelerando.

Raul reformou-se antes de tempo, chamaram-no ao escritório e ofereceram-lhe uma quantia para se ir embora:

Um rapaz novito e sagaz, olhou-o e depois de um silêncio premeditado, comunicou-lhe:
- O Amigo Raul, vai desculpar a minha franqueza, mas as suas skills já não estão adaptadas aos desafios do marketing actual, a clientela mudou muito.
Raul engoliu em seco e saiu do escritório.
Deambulou horas a fio. Em cada mulher julgava reencontrar a sua espanhola. Mas ela tinha ido para "lejos".

Há pouco mais de seis meses recebeu uma encomenda postal. 

Lá dentro um telemóvel.
Julgou que fosse um cuidado distante do filho médico.
Pediu ajuda ao rapaz que transportava as botijas de gás, e lá conseguiu ligar o objecto.
Minutos depois a sua primeira mensagem recebida:
-Ola cariño, te acuerdas de mi? 

Raul era agora um senhor magro de bigodes retorcidos, que o tinham acompanhado desde a idade dos trinta anos, a austeridade e o silêncio tinham mantido aquela paixão durante vinte e três anos.

Para a viver bastava-lhe sair de casa diariamente depois de cumprido o sacrifício do chá, aninhar-se debaixo de uma árvores e dizer as palavras todas, protegendo-as dos ouvidos curiosos, com as mãos em concha, mas revelando-as num menear delator.

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