segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A artista da cidade e os proscritos.




Habitualmente sou um rouxinol a armar-me em coruja, guardo o escrever para a noite e o pensar para a manhã, nem sempre produz bons resultados, sempre que releio qualquer coisa que venha da noite corrijo-a, sobretudo se a reler de manhã.
Enfim, coisas das horas, umas servem para umas coisas e outras podem ser desperdiçadas.
Também gosto de desperdiçar algumas, mas só o posso fazer a horas que já de si são um desperdício, a baixa madrugada ( ora se existe a alta e a baixa idade média, pode igualmente existir a alta e a baixa madrugada).
Há dias atrás, entre um episódio de uma série americana, e um Toda a verdade sobre qualquer coisa, como os matadouros em França, ou  a exploração de mão de obra infantil no Bangladesh, o zapping depositou-me canal económico, e desembarquei na entrevista  aqui http://tv.economico.sapo.pt/ disponível,  com Joana Vasconcelos
Interessará pouco o que penso ou deixo de pensar sobre a obra ( o corpo de trabalho como a própria refere), todo aquele canal é um prodígio de estranhas verdades e arautos da bondade do sistema, horas antes tinha visto um senhor afirmar que depois das últimas semanas as pessoas estavam muito mais confiantes, portanto como imaginam é um canal de ficção, daquela pouco envolvente, falta.lhes a verosimilhança, ou talvez sofram de excesso dela ( se chamarmos o conceito platónico, verosimilhança como uma aparência da verdade, uma enganosa e eventualmente perigosa aparência) bom, adiante.
Enquanto ouvia a J.V. foram várias as questões que coloquei a mim própria.
Resumo-as aqui em dois eixos.

A marketização das pessoas/artistas
As formas de reconhecimento e aceitação

Em relação ao primeiro, a marketização das pessoas, lembrei-me de um professor de estética que conheci há alguns anos e que surpreendido me relatou ter o curso, no qual ministrava a cadeira de estética,sofrido alterações programáticas profundas  sendo um curso do fazer, Artes Plásticas,  os alunos passavam grande parte do seu tempo a saber como angariar fundos e a construírem um discurso para se  venderem, mesmo antes de terem um labor oficinal que lhes permitisse reconhecerem-se no trabalho que produziam. Dizia ele que se tratava muito mais de falar sobre o fazer, ao invés de fazer, para depois poder pensar e só mais tarde  falar, a partir de uma reflexão proporcionada pelo fazer.
Esta ideia de transformar todas as pessoas em marcas, em produtos, que com uma boa campanha publicitária  se podem impor  num mercado ruidoso é transversal a várias áreas e contaminou boa parte da do pensamento, da política à arte passando pelos sabonetes ou pela ração para gatos, é tudo reduzido a planos de negócio,  publicidade, volume de venda e valor de mercado.
E assim as pessoas, sujeitam-se às leis e regras de uma economia que serve para coisas e não para gente, gente que não seja feita de detergente.
A J.V. é um produto, fala de si como um valor acrescentado, e alimenta uma antiquíssima discussão que perpassa por   toda a reflexão sobre arte moderna, acerca  do valor do objecto enquanto tal e o valor acrescentado pela especulação em torno do mesmo.
São inúmeros os benefícios directos pelo assumir de uma posição destas, tão em contra-ciclo com a imagem revoltada, incompreendida e  socialmente desintegrada que muitos artistas cultivam naturalmente.
Marketizar-se é vender-se a si próprio mas sempre na terceira pessoa, deve forçar uma capacidade de extremo narcisismo e uma aptidão invulgar para em simultâneo se descentrar, como se ao falar de si se falasse de um corpo todo ele feito de próteses.

O segundo eixo diz respeito às formas, mecanismos de reconhecimento e validação, mesmo o mais "detached" artista precisa de alguma forma de reconhecimento, aliás a produção artística parte muitas vezes, ainda que inconscientemente, desta necessidade.
  A J. V. guarda um ressentimento notório em relação ao Mundo da Arte ( Arthur C- Danto), ressalvando que tem o reconhecimento do povo, num discurso que se ausenta intencionalmente da realidade dura, desesperada de muitos artistas portugueses no momento presente, não há durante toda a entrevista uma única referência à situação actual do nosso país. Quando questionada acerca das supostas barreiras que os artistas enfrentam em Portugal, a resposta é uma tradução do pensamento vigente no poder, barreiras não, constrangimentos, os constrangimentos ultrapassam-se, as barreiras só se forem derrubadas.
A artista, tem o suporte do poder, o poder financeiro e o reconhecimento do povo, mas não perdoa aos outros artistas o facto de não a considerarem como par entre pares.
Um artista deve saber conviver com a a possibilidade de ser banido, proscrito, caso contrário poderá ser muitas coisas, até empresário de sucesso, mas dificilmente terá a resiliência necessária para se manter artista.
A permanente ameaça de proscrição faz parte da criação artística, um artista que esteja mais sincronizado com o tempo real do que com o tempo invisível, fica preso num relógio que rapidamente se transforma em bomba relógio, é precisamente aí que reside o rancor que J. V. guarda, ou talvez não guarde, porque o exibe.
Quando a cidade ( entenda-se aqui o Povo e o Poder) a banirem, os seus pares não serão a comunidade de proscritos que a acolherá, e a cidade mais tarde ou mais cedo acaba sempre por banir os artistas, por mais que os tenha acolhido durante um determinado tempo, e sobretudo quando o acolheu de forma calorosa e visível.
A comunidade de proscritos é mais duradoura, basta fazer parte desse tempo que não se conta pelo relógio.
Com tantas conquistas e tantos números a suportarem-nas  J. V, deveria ser uma pessoa grata e não um ser rancoroso, será que se atraiçoou a si própria e apesar de todo o maketing não conseguiu fazer um soul lifting?
Fica a dúvida.





4 comentários:

  1. Houve um tempo em que as "noites escuras" nos deram poesia e poetas de claras madrugadas.
    Hoje tudo mudou, há muitas almas escuras na realidade artificial.

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    1. Ainda existem muitos poetas e muitas madrugadas, basta saber para onde olhar.

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  2. Há factos, posturas, atitudes, que fazem dos menores, ainda menores.
    O drama, a lástima, é que a culpa não é apenas deles. A cumplicidade, na mediocridade, é qualquer coisa de abominável.

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    1. Essa cumplicidade é uma velha estratégia de sobrevivência, confundir-se com a paisagem.

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