segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A não consciência do Bem e do Mal.

Eram duas mulheres de idades muito diferentes. Uma deles mostrava reverência perante outra, ouvindo os seus preciosos conselhos. A mais velha atirava palavras como quem atira pedras. A conversa prolongou-se, embalada pela luz mórbida do subterrâneo. Era uma descrição detalhada sobre todas as velhotas de um lar, com pormenores sobre as finaças e família de cada uma delas. O tom desbragado da mulher mais velha era aterrador. - A Dona Conceição é muito rica, tem tudo do melhor, e dinheirinho, mas tem dois filhos que a vão ver todas as semanas, o filho até vai às vezes lá almoçar, não vale a pena perderes muito tempo com ela, dali não vem nada, é limpar o quarto e andar. Já a D. Berta, essa não tem nada, coitada, é um sobrinho que lhe paga tudo, e nem a vai ver, não precisas limpar todos os dias. Agora a outra, a do fumdo do corredor, tem uma nora que é enfermeira e anda lá sempre a cheirar, aquela que é toda mirradinha, estás a ver? Ah, falta a do nariz adunco, ui essa, então é assim, tem dois filhos, tem dinheiro, e os filhos têm lá a sua vida, têm bons carros, o filho diz que é engenheiro, e a filha é professora mas da faculdade, durante anos era muito generosa, não tinha netos, e pelava-se por um bocadinho de conversa, mas agora, o filho adoptou um casalinho de irmãos que estavam muito desprezados, olha só te digo, a velha parece que viu o sol pela primeira vez, só fala dos netinhos, é tudo para eles, e para nós acabou-se, portanto olha, não há guito, não há cá leitinho morno nem bolachinhas, julgas que eu sou parva... A receptora da informação mantinha-se muda, acenando com a cabeça, a cada frase da mulher mais velha. O mais estranho era o facto de as mulheres agirem como se nada de reprovável estivesse ali, naquele diálogo sórdido, naquela partilha com cheiro a crime. O mal é a ausência de bem, a não consciência da fronteira entre um e outro, é um território da erosão dos afectos e do sentido de comunidade.

2 comentários:

  1. Ausência de humanidade. Começamos a transformar-nos noutra coisa, que não sei nomear. Mas não é Humana.

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