quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Da piedade e do perdão - parte 2




Há um regaço crescente de face lunar
Um rio negro entre o cá e o lá
Um barqueiro demorado, adormecido na margem errada.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Entre a piedade e o perdão.Pulp - Help The Aged


Ser velho é ter vivido muito tempo, ser velho é usar uma bengala para andar, ser velho é ver mal, ser velho é ser velho.
Nada transforma uma pessoa num ser especial apenas por ter atingido a velhice, quem foi especial a vida toda, continuará a sê-lo, quem não foi, não verá descer sobre si o espírito santo, sob a forma de línguas de fogo, para o iluminarem.
Tenho dito e nada me demoverá( excepto talvez a minha própria velhice, não esta de agora que ainda é prazeirosa, mas a outra a ultra-velhice)um velho é um velho.
Serve este post para dizer que apesar da prática do perdão ser um exercício reservado a almas muy avançadas e capazes de desprendimentos das cousas da vida, não posso deixar de apelar ao exercício activo da piedade, uma das três virtudes morais, a piedade não deve estar dependente do perdão, a piedade é a face humana do desenvolvimento da civilização, é a marca que distingue um conjunto de seres humanos de uma alcateia.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Turbulência (PORTISHEAD live SOUR TIMES)






- Parece que a tempestade amainou, já não era sem tempo.
- Desculpe, mas não dei por nada, aqui continua tudo em turbulência - disse ela apontando para a cabeça.
- Não diga essas coisas assim, ainda assusta as pessoas.
- Sabe, pior do que assustar os outros é assustar-me a mim própria, às vezes é inverno durante todo o verão, ventanias e janelas a bater, o som do mar encapelado aqui na planura do nada, e eu a saber que as pessoas não sentem os meus temporais.
É como lhe digo, se a tempestade amainou foi aí fora, aqui continua tudo muito turneriano.
- Se não a conhecesse há tantos anos acho que a convidava para um chá e uma deliciosa fatia de bolo, mas sei que por estes dias anda a café, acertei?
- E há outra maneira de evitar o sono?
- Um dia ainda vai encontrar paz.
- Certamente, no dia que deixar de pensar e sentir e respirar, a menos que exista um além, coisa que duvido metódicamente, mas se isso acontecer serei o exemplo da alma danada por toda a eternidade. Apresse-se homem, aí fora parou de chover, aproveite e vá lá ao seu chá reconfortante.- Ela fugiu por entre umas arcadas de um prédio, deixando-o ali em suspenso.
- Epá,aquela tipa é um bocado doida, não achas? - comentou um outro que assistira sentado a todo o diálogo.
- Não é nada disso, parece que a rapariga é polar.- garantiu o dono do café.
- Polar? Como as camisolas? Ui, então deve ser quente -ironizou o homem sentado.
- QUal polar, qual carapuça, é bi - bipolar.- Afiançou um terceiro homem enquanto despejava um 1920 dentro da chávena de café.
- O quê? É bi? Ah... nunca tinha dado por nada, olhe que se é, é muito discreta, mas digo-lhe não precisava, ela até nem é feia de todo.
O primeiro homem, olhou para dentro do café, encolheu os ombros e saiu em passo acelarado, sem parar, percorreu as arcadas do prédio por onde ela tinha desaparecido.
A chuva torrencial regressou, sem contemplações nem pausas para chá.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A asa era de cera e ela não sabia sparklehorse - shade and honey


A sombra descobria-lhe um sorriso inábil. Viu crescer-lhe uma asa ali no lugar do braço. foi fazer um café e como só lhe restava o braço esquerdo desistiu, quis escrever mas era dextra, quis vestir-se e a asa não cabia. então deixou-se estar assim, a dançar sem ocupação nem preocupação. um sol ardente rebentou a sombra e a asa derreteu. a asa era de cera e ela não sabia. sob um sol insuportável, preparou um café, vestiu-se e sentou-se a escrever.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A minha Avó afinal sabe coisas! José Afonso - "Ó minha amora madura" do disco "Eu vou ser como a toupeir...


Na semana passada estava a cantar com os meus alunos, e como na semana anterior já tinha contado uma história a partir das recolhas do Teófilo Braga, coisa que já fazemos desde o ano lectivo anterior, decidi falar-lhes sobre tradição oral, e lá fomos nós a falar sobre Portugal ( desenhado por mim no quadro, por não encontrar aqueles mapas antigos que havia no meu tempo em todas as escolas), para falar de tradição oral chamei à conversa os avós dos meus alunos, de onde vinham, onde viviam, e o que tinham para contar. E lá fomos desmanchando palavras difícieis daquelas que eles gostam de repetir e que já se habituaram a pedir: -Ó profª Rita, podes desmontar essa palavra? Tradição Oral. Nisto, Uma menina disse-me, entre a vergonha e a pena, que a avó não lhe podia dizer nada pois a avó nada sabia por não ter ido à escola em pequenina. Os pais tinham-na avisado que não pedisse ajuda à avó para fazer os trabalhos de casa, a avó até sabia fazer contas mas só de cabeça porque não sabia escrever os números. E lá fomos nós desmontando a tradição oral, comigo a dizer-lhe que a avó saberia decerto cantigas ou histórias dos tempos de pequenina, dos tempos antes da televisão. ( este foi o grande espanto, como passar uma noite sem televisão, a fazer o quê?) Nesta semana, nova aula, e volto a lembrar a tradição oral, desta vez só para não deixar no vazio o trabalho anterior, a menina da avó que não sabia nada, põe o dedo no ar, dou-lhe a palavra: -Prof.ª Rita, a minha avó afinal sabe coisas! Eu cantei-lhe a canção do limoeiro e ela até sabia outra parte, e eu escrevi e trouxe-te. (naquele momento apeteceu-me pregar-lhe um beijo, a quadra escrita por ela e ditada pela avó vinha cheia de erros, mas valeu por centenas de páginas de teorias por viver).

terça-feira, 20 de novembro de 2012

comunicar com crianças é uma aprendizagem tão difícil como entender as melodias das baleias.To Kill A Mockingbird Soundtrack 1. Main Titles


Li o livro de Harper Lee há pouco tempo, e foi uma experiência tão forte que ainda não consegui deixar ir as personagens, ando com o livro na mala e volto a ele todos os dias, pelo simples prazer de reencontrar os momentos e as personagens. A infância é um território complexo. Cruel e belo, onde a fábula e a razão convivem sem se aniquilarem. "Killing a Mocking Bird" é indispensável para quem queira entrar neste território, comunicar com crianças é uma aprendizagem tão difícil como entender as melodias das baleias. Ouvi-las e falar-lhes, sem as menosprezar, mesmo quando as suas afirmações desafiam a lógica, é um processo de disponibilidade de alma que leva o adulto a percorrer a estrada entre a certeza e a dúvida, sem se entregar à descrença.

Peças soltas numa engrenagem momentos antes da implosão


Não compreendo o mundo, não compreendo o discurso sobre a realidade, não compreendo os humanos, nem os animais dentro deles, não compreendo os sinais, nem os signos, nem o trânsito na rotunda. O mundo caiu ao chão e quando o apanharam escutaram-se peças soltas na engrenagem.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Wim Mertens Ensemble - Struggle for Pleasure


-Dás-me licença que te ame? - Perguntou ele. -Agora não, tenho muito em que pensar, o ruído do teu amor por mim pode interromper o meu fluxo mental, não leves a mal.- Disse ela, sem desviar os olhos do livro. -Então deixa-me olhar para ti. -Isso ainda é pior, a contemplação interfere de um modo subterrâneo e insinuante, por favor não o faças. -Está bem, está bem, vou odiar-te em silêncio, se isso te convém. -Ainda não compreendeste. Eu quero que Não tenhas sentimento algum por mim, ignora-me, sem desprezo, desconhece-me, sofre de amnésia emocional sobre mim. Ele saiu batendo a porta, sem palavras. Ela fechou as pesadas cortinas de veludo verde e recostou-se, sem livro. Agora podia saborear o vazio.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Há um inverno a descer sobre este outono.Sigur Ros - Olsen Olsen - HD


Há um Inverno que desce sobre nós. Um frio de luz que agride os nossos olhos turvos. Lágrimas, lágrimas e dentes cerrados. Há um outono que se esconde de nós. Folhas vermelhas em fuga. Há um inverno que se instalou por baixo da pele. Uma morte pequenina que incendeia a vontade.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Adriano Correia de Oliveira - Tejo que levas as águas


Passaram mais de vinte e quatro horas. A cidade lavou a ferida. E correm mágoas para o mar. seguem-se outros capitulos negros de uma história negra. os miúdos na rua, as vontades pueris de se tornarem ícones de uma revolta, um sistema sem possibilidade de regeneração, e a pergunta dolorosa a regressar em espiral. A ética e a fome que relação mantêm?

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Anouar Brahem - Conte de l'incroyable amour


Qual é a quantidade de tristeza que uns olhos podem guardar? Quando é que a tristeza transborda? Como é que a tristeza se veste de fúria e vai da água ao fogo?

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Que sabes tu acerca do sabor do inferno?


Ainda acabrunhado, ele agarrou-lhe a face com dois dedos e afirmou: -Despertas em mim o que há de pior, perto de ti confirmo a existência do inferno. Ela evitou cruzar o olhar. Aquela conversa não lhe agradava. - Preferia que me falasses de ambrosia e mel, mas se preferes o sabor do inferno, devo afiançar-te que nada sei sobre o assunto, talvez tu me possas explicar. Encerrado o diálogo, sobraram os gestos, aqueles que não cabiam nas palavras e que galgam o silêncio numa vertigem sincopada.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

domingo, 11 de novembro de 2012

um destino de ofélia desprendia-se do musgo das paredes. Kylie Minogue & Nick Cave - Where the Wild Roses Grow


um destino de ofélia desprendia-se do musgo das paredes. um corpo flutuante na ribeira, no fundo do laranjal, uma memória sem tempo, uma memória toda feita de lugar. abandonou a casa à fome da hera. Sem porta trancada, sem despedidas. Sem retorno possível.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A não consciência do Bem e do Mal.

Eram duas mulheres de idades muito diferentes. Uma deles mostrava reverência perante outra, ouvindo os seus preciosos conselhos. A mais velha atirava palavras como quem atira pedras. A conversa prolongou-se, embalada pela luz mórbida do subterrâneo. Era uma descrição detalhada sobre todas as velhotas de um lar, com pormenores sobre as finaças e família de cada uma delas. O tom desbragado da mulher mais velha era aterrador. - A Dona Conceição é muito rica, tem tudo do melhor, e dinheirinho, mas tem dois filhos que a vão ver todas as semanas, o filho até vai às vezes lá almoçar, não vale a pena perderes muito tempo com ela, dali não vem nada, é limpar o quarto e andar. Já a D. Berta, essa não tem nada, coitada, é um sobrinho que lhe paga tudo, e nem a vai ver, não precisas limpar todos os dias. Agora a outra, a do fumdo do corredor, tem uma nora que é enfermeira e anda lá sempre a cheirar, aquela que é toda mirradinha, estás a ver? Ah, falta a do nariz adunco, ui essa, então é assim, tem dois filhos, tem dinheiro, e os filhos têm lá a sua vida, têm bons carros, o filho diz que é engenheiro, e a filha é professora mas da faculdade, durante anos era muito generosa, não tinha netos, e pelava-se por um bocadinho de conversa, mas agora, o filho adoptou um casalinho de irmãos que estavam muito desprezados, olha só te digo, a velha parece que viu o sol pela primeira vez, só fala dos netinhos, é tudo para eles, e para nós acabou-se, portanto olha, não há guito, não há cá leitinho morno nem bolachinhas, julgas que eu sou parva... A receptora da informação mantinha-se muda, acenando com a cabeça, a cada frase da mulher mais velha. O mais estranho era o facto de as mulheres agirem como se nada de reprovável estivesse ali, naquele diálogo sórdido, naquela partilha com cheiro a crime. O mal é a ausência de bem, a não consciência da fronteira entre um e outro, é um território da erosão dos afectos e do sentido de comunidade.

Tenho-te um amor reconcâvo, daqueles que são onda ou chuva ou terra conforme o nascer do sol por dentro de mim.


domingo, 4 de novembro de 2012

Na esquina dos dias que findam, espera-nos o regresso da barbárie.

Tenho tentado adormecer-me na poesia, já que a realidade está cada vez mais vulgar, encarniçada e escarnecida. Exilei-me num canto, que não era nono, e dei à costa num brutal embate entre corpo e rocha. Que não restem dúvidas, está em causa a civilização. Já não se trata apenas, de um modus vivendi versus outro. Na esquina dos dias que findam, espera-nos o regresso da barbárie, a lei do mais forte, a natureza em tom cruento, sem eufemismo possível. Desmantelar o estado social é muito mais do que reduzir na despesa, é um projecto social com contornos de abismo. Desmantelar o estado social não é somente deixar de garantir a saúde tendencialmente gratuita, a educação para todos, as reformas para quem trabalhou e as protecções para grupos específicos, é rasgar o pacto entre os homens, o pacto que evita a ira do esfomeado contra o banqueiro. É aninhar a raiva e acordar a barbárie. A evolução física da humanidade retirou-nos força bruta e fomos aperfeiçoando a utilização de outras skills( aptidões, ferramentas) mais apropriadas a vida em comunidade que, julgámos nós, se teria tornado menos hostil. Mas se se interromper a evolução, constrangendo a humanidade, o instinto de sobrevivência, inerente a todas as espécies que não se abandonam à extinção, voltará a fazer crescer garras no fundo das nossas mãos e os caninos voltarão a afiar-se. Claro que não será imediato, uma ou duas gerações possuirão ainda skills desadaptadas da realidade, esses transformar-se-ão em presas fáceis, gazelas impotentes. O mundo em construção é sobretudo um mundo em colapso, uma extinção programada da civilização, os novos bárbaros nada têm de doce e já por aí andam com palavras em forma de pedras lascadas.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sia, Lullaby

A casa é sobretudo um lugar dentro de mim onde vocês poderão sempre adormecer tranquilos envolvidos por um longínquo cheiro a lavanda. ( aos filhos)