sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A agitação das crianças começa a ser uma característica transversal em toda a sociedade. Do ponto de vista cognitivo as crianças reconhecem e reproduzem as regras, no entanto parece existir um desapego afectivo pela utilização das mesmas, como se à compreensão oral não correspondesse a uma compreensão física dos princípios. Esta realidade terá múltiplas justificações, para os educadores o foco está nas famílias, na sua suposta demissão da tarefa educadora, para as famílias o foco aponta para a escola e para a sua suposta incapacidade em atender às necessidades diferenciadas das crianças. Vale a pena ir para além do arame farpado, a educação de uma criança implica, como diz um provérbio nigeriano, uma aldeia inteira, ora se as aldeias estão diluídas, se as comunidades são entidades fragmentadas e desempoderadas, como poderão as crianças desenvolver-se sem reflectir essa agitação? A agitação das crianças é o resultado do caos em que estamos mergulhados e que escolhemos ignorar, como se fosse possível ser livre para além da segurança. O movimento humano tem sido uma continuada busca por um equilíbrio entre a liberdade e a segurança, sendo que em determinados momentos é visível a preponderância de um sobre o outro, em momentos de grande liberdade a segurança ocupa um plano inferior, e vice-versa. Atravessamos um tempo complexo onde a segurança se tornou ilusória e a liberdade é atacada por uma arma poderosa e interna, o medo. Esta conjugação é o caldo que alimenta a diluição da consciência crítica. Digamos que o ser humano está preparado para prescindir de alguma liberdade se isso significar garantir a sua segurança, de igual modo, será capaz de comprometer a sua segurança se esse for o preço da liberdade, mas renunciar a ambas configura uma situação de abnegação sem recompensa na contemporaneidade. Esta é a tragédia do homem actual, o homem que desejou realizar-se no presente e se vê encurralado e sem futuros. As crianças não verbalizam esta angústia, expressam-na em pontapés, olhares desafiadores, desprezo pelas regras, falta de respeito pelo espaço e pelas pessoas, comportamentos disruptivos. Será demasiado simples catalogar tudo como má educação, a coisa é mais profunda e merece uma atenção que não se fique pelas imanências. Comecemos por reflectir acerca das fronteiras e competências dos intervenientes no processo educativo. Supondo que as crianças podem ser mapeadas como territórios e que as fronteiras podem ser asseguradas por vigilantes que não permitam a livre circulação de ideias e crenças entre a escola, a família e a comunidade, alguns especialistas defendem a separação entre educação e instrução, cabendo a primeira à família e a segunda à instituição escola. Mas esta separação funcional, parte de um pressuposto de divisão de tarefas que seria aplicável a máquinas mas que se torna complicada quando falamos de crianças, o território da escola já não é apenas a instrução, a escola democratizada e inclusiva, não se pode cingir a instruir, este é o nó cego das opções: se a escola quer dividir competências e atribuições com as famílias então terá que deixar do lado de fora todos aqueles cujas famílias não são capazes de cumprir a sua parte do contrato, se a escola se quer democrática e inclusiva então talvez tenha que equacionar outras funções. As famílias não possuem todas as mesmas capacidades, algumas até se poderiam substituir à escola no que à instrução concerne, outras são frágeis até no desempenho das suas competências como providenciadoras de sustento para os seus, mas a própria constituição consagra o direito à ajuda do estado, aliás no artigo 67 está claramente escrito que o estado deve “Cooperar com os pais na educação dos filhos”, quer isto dizer que a escola pública, enquanto instituição que representa no terreno esta cooperação entre o estado e as famílias, pode ajudar a superar as fragilidades das famílias. Esta lógica está longe de ser consensual, e ainda que o seja no plano material, creio que ninguém recusa que uma criança que não tenha capacidade financeira para adquirir manuais e materiais para a escola deve ser subsidiada pelo estado, muitos ainda discordam acerca do papel a desempenhar por cada um quando se trata do total desenvolvimento de uma criança, se no plano moral ela apresenta valores que não são compatíveis com a convivência em grupo e a frequência académica, até que ponto pode e deve a escola intervir? Esta é a pergunta que nos devemos colocar. Quando falamos de escola pública, falamos de uma instituição que tem por missão dotar crianças de diferentes classes, credos e raças com ferramentas cognitivas e sociais que lhes permitam crescer como cidadãos válidos, capazes de construir caminhos de felicidade para si em conjunto com outros. A escola pública sente de forma aguda todas as alterações sociais e económicas que ocorrem nas comunidades, e para que os vendavais não se transformem em furacões vai ser necessário reflectir e agir de acordo com os tempos e os modos, assumindo sem restrições esse papel cooperante, a bem da sociedade. Perante as demonstrações de violência, desordem, desrespeito, disfunção, parece tornar-se evidente que é urgente olhar a escola, o seu território físico e predominância do tempo que ocupa na vida das criança, como uma oportunidade de transformação, a não desperdiçar nesta complicada teia que é a humanidade, num momento crítico como aquele que vivemos. Mas não basta sobrecarregar professores com tarefas e atribuições, essa é uma visão redutora, a escola vai precisar de equipas que consigam responder no terreno, como tendas de campanha em tempos de guerra. Estamos debaixo de fogo e precisamos reinventar abrigos, se na idade média as igrejas eram o santuário, talvez, na época presente, as escolas sejam o seu equivalente, um lugar onde as crianças possam pedir protecção. Convidem artistas, cientistas, anciãos e artesãos, nadadores e carpinteiros, abram a escola, construam pontes, partilhem pão e sonho, vamos deixar as nossas crianças serem mais do que compostoras de conhecimentos alheios, deixemo-las produzir conhecimentos, descobrir na primeira pessoa, sujar as mãos de terra e de farinha e a ponta dos dedos de tintas, a escola baseada no contrato social que se impôs com a revolução industrial já não faz sentido, o sistema que a suportava está em desmoronamento. A ansiedade que as nossas crianças reflectem é um sinal de alarme, as consequências ao nível do desenvolvimento das suas capacidades poderão ser de tal forma demolidoras que as suas possibilidades de independência futura estejam a ser postas em causa. Esta ansiedade, traduz-se num clima de explosão/repressão que impõe um ciclo negativo e improdutivo para todas as partes. Para trabalhar em cooperação, e a cooperação será a melhor maneira de transpor barreiras, para o fazer será necessário incidir a montante e contrariar a cegueira da auto-preservação individualista, não quero com isto afirmar que as crianças devam prescindir da sua individualidade, mas terão que aprender a estabelecer zonas de intersecção com os outros para aprenderem a cooperar. Se a escola pública se quer democratizada e plural deverá ajudar a caminhar no sentido do trabalho em cooperação, ou então altere-se a missão da escola pública e excluam-se aqueles que não revelem aptidões sociais positivas, como está não poderá permanecer, sob pena de se transformar num espaço inútil e esvaziado de conteúdo.

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